Coeficientes binomiais
Os números que aparecem no triângulo de Pascal são chamados de coeficientes binomiais.
Primeiras seis linhas do triângulo de Pascal:
1
1 1
1 2 1
1 3 3 1
1 4 6 4 1
1 5 10 10 5 1
A regra de formação do triângulo de Pascal é a seguinte: cada número é a soma dos dois números diretamente acima dele. Os números nas bordas do triângulo são sempre \(1\). Contando as linhas a partir de \(0\), a \(n\)-ésima linha do triângulo de Pascal contém \(n + 1\) números. Os números na \(n\)-ésima linha são denotados por \(\binom{n}{0}, \binom{n}{1}, \binom{n}{2}, \ldots, \binom{n}{n}\). A regra de formação pode ser expressa como: \[
\binom n0=\binom nn=1, \quad \binom{n}{k} = \binom{n-1}{k-1} + \binom{n-1}{k}\quad \text{para } 1 \leq k \leq n-1.
\]
O número \(\binom{n}{k}\) é chamado de coeficiente binomial.
Lema 13.1 O coeficiente binomial \(\binom nk\) coincide com o número de maneiras de escolher \(k\) elementos de um conjunto com \(n\) elementos. Em outras palavras \(\binom nk\) coincide com o número de subconjuntos com \(k\) elementos de um conjunto com \(n\) elementos.
Comprovação. Demonstremos por indução em \(n\) começando com \(n=0\). Quando \(n=0\), a afirmação é verdadeira porque \(\binom 00=1\) e temos apenas uma maneira de escolher zero elementos de um conjunto com zero elementos (não escolhendo nenhum). Assuma que a afirmação é verdadeira para \(n\geq 0\). Ora assuma que temos um conjunto de \(n+1\) elementos e queremos formar um subconjunto com \(k\) elementos. Se \(k=0\) ou \(k=n+1\), há apenas uma maneira de fazer isso: escolher o conjunto vazio ou o conjunto todo, respectivamente. Logo \(\binom {n+1}0=\binom{n+1}{n+1}=1\). Agora, suponha que \(1 \leq k \leq n\). Então temos duas possibilidades. Pode ser que o \(n+1\)-ésimo elemento esteja no subconjunto escolhido ou não. Se o \(n+1\)-ésimo elemento estiver no subconjunto, então precisamos escolher os outros \(k-1\) elementos dos primeiros \(n\) elementos, o que pode ser feito de \(\binom{n}{k-1}\) maneiras. Se o \(n+1\)-ésimo elemento não estiver no subconjunto, então precisamos escolher os \(k\) elementos dos primeiros \(n\) elementos, o que pode ser feito de \(\binom{n}{k}\) maneiras. Portanto, o número total de maneiras de escolher \(k\) elementos de um conjunto com \(n+1\) elementos é a soma dessas duas possibilidades, ou seja, \[
\binom{n+1}{k} = \binom{n}{k-1} + \binom{n}{k}.
\]
O coeficiente binomial \(\binom nk\) é frequentamente escrito usando fatorial. Se \(k\in \Z\) e \(k\geq 0\), então \(k!\) é definido como \[
0!=1\quad \mbox{e}\quad k!=1\cdot 2 \cdots n.
\] Por exemplo, os fatoriais dos números \(0\), \(1\), \(2\), \(3\), \(4\), \(5\), \(6\) são \[
0!=1, \quad 1!=1, \quad 2!=2, \quad 3!=6, \quad 4!=24, \quad 5!=120, \quad 6!=720.
\]
Lema 13.2 Se \(n\) e \(k\) são inteiros com \(n\geq 0\) e \(0\leq k \leq n\), então \[
\binom nk = \frac{n!}{k!(n-k)!}=\frac{n(n-1)(n-2)\cdots (n-k+1)}{k!}.
\]
Comprovação. Demonstremos por indução em \(n\). Quando \(n=0\), a afirmação é verdadeira, pois \(\binom 00=1\) e \[
\frac{0!}{0!0!}=1.
\] Assuma que a afirmação é verdadeira para algum \(n\geq 0\). Se \(k=0\) ou \(k=n+1\), então \[
\binom{n+1}0=1=\frac{(n+1)!}{0!(n+1)!} \quad \mbox{e}\quad \binom{n+1}{n+1}=1=\frac{(n+1)!}{(n+1)!0!}.
\] Agora, suponha que \(1\leq k \leq n\). Então, pela definição do coeficiente binomial e pela hipótese de indução, temos \[\begin{align*}
\binom{n+1}k & = \binom nk + \binom{n}{k-1} \\
& = \frac{n!}{k!(n
-k)!} + \frac{n!}{(k-1)!(n-(k-1))!} \\
& = \frac{n!(n-k+1)}{k!(n-k+1)(n-k)!} + \frac{n!k}{k!(n-k+1)(n-k)!} \\
& = \frac{n!(n+1)}{k!(n-k+1)(n-k)!} \\
& = \frac{(n+1)!}{k!((n+1)-k)!}.
\end{align*}\]
O fatorial \(k!\) também tem uma interpretação combinatória. O número \(k!\) é o número de maneiras de ordenar \(k\) elementos distintos. Por exemplo, se temos \(3\) elementos distintos \(A\), \(B\) e \(C\), as possíveis permutações são \(ABC\), \(ACB\), \(BAC\), \(BCA\), \(CAB\) e \(CBA\), totalizando \(3! = 6\) ordenações.
O binómio de Newton
O binómio de Newton é uma fórmula que expressa a expansão de potências de binômios. Sabe-se que \[\begin{align*}
(a+b)^2 &= a^2 + 2ab + b^2\\
(a+b)^3 &= a^3 + 3a^2b + 3ab^2 + b^3\\
\end{align*}\]
Considere \[
(a+b)^n = (a+b)(a+b)\cdots (a+b) \quad \text{($n$ fatores)}.
\] A potência \((a+b)^n\) pode ser expandida como uma soma de termos da forma \(a^{n-k}b^k\). Inicialmente podemos pensar assim: ao expandir o produto, cada termo \(a^{n-k}b^k\) é obtido escolhendo-se \(a\) de \(n-k\) fatores e \(b\) de \(k\) fatores. O número de maneiras de fazer isso é exatamente o coeficiente binomial \(\binom nk\). Portanto, a expansão geral é dada por: \[\begin{align*}
(a + b)^n &= \binom n0 a^n+\binom n1 a^{n-1}b+\binom n2 a^{n-2}b^2+\cdots+\binom n{n-1} ab^{n-1}+\binom n{n} b^n\\
&= \sum_{k=0}^{n} \binom{n}{k} a^{n-k} b^k.
\end{align*}\]
A seguir, apresentamos uma demonstração formal do binómio de Newton usando indução matemática.
Lema 13.3 Para quaisquer números \(a\) e \(b\) e um inteiro não negativo \(n\), temos: \[
(a + b)^n = \sum_{k=0}^{n} \binom{n}{k} a^{n-k} b^k.
\]
Comprovação. Demonstremos por indução em \(n\). Quando \(n=0\), a afirmação é verdadeira, pois \[
(a + b)^0 = 1 = \sum_{k=0}^{0} \binom{0}{k} a^{0-k} b^k.
\] Assuma que a afirmação é verdadeira para algum \(n\geq 0\). Então, temos \[\begin{align*}
(a + b)^{n+1} & = (a + b)(a + b)^n \\
& = (a + b) \sum_{k=0}^{n} \binom{n}{k} a^{n-k} b^k \\
& = \sum_{k=0}^{n} \binom{n}{k} a^{n-k+1} b^k + \sum_{k=0}^{n} \binom{n}{k} a^{n-k} b^{k+1} \\
& = a^{n+1} + \sum_{k=1}^{n} \binom{n}{k} a^{n-k+1} b^k + \sum_{k=0}^{n-1} \binom{n}{k} a^{n-k} b^{k+1} + b^{n+1} \\
& = a^{n+1} + \sum_{k=1}^{n} \binom{n}{k} a^{n-k+1} b^k + \sum_{k=1}^{n} \binom{n}{k-1} a^{n-(k-1)} b^k + b^{n+1} \\
& = a^{n+1} + \sum_{k=1}^{n} \left( \binom{n}{k} + \binom{n}{k-1} \right) a^{n-k+1} b^k + b^{n+1} \\
& = a^{n+1} + \sum_{k=1}^{n} \binom{n+1}{k} a^{n-k+1} b^k + b^{n+1} \\
& = \sum_{k=0}^{n+1} \binom{n+1}{k} a^{(n+1)-k} b^k.
\end{align*}\]
O Lema de divisão de Euclides
Lema 13.4 Para quaisquer inteiros \(a\) e \(b\) com \(b > 0\), existem únicos inteiros \(q\) e \(r\) tais que: \[
a = bq + r \quad \text{com } 0 \leq r < b.
\] Aqui, \(q\) é chamado de quociente e \(r\) é chamado de resto da divisão de \(a\) por \(b\).
Comprovação. Primeiro, provemos a existência de tais inteiros \(q\) e \(r\). Considere o conjunto \[S = \{a - bk \mid k \in \Z \text{ e } a - bk \geq 0\}.\] O conjunto \(S\) é não vazio, pois, escolhendo \(k\) adequadamente, podemos garantir que \(a - bk\) seja não negativo. Pelo Princípio da Boa Ordem, o conjunto \(S\) possui um menor elemento, que chamaremos de \(r\). Assim, existe um inteiro \(q\) tal que \(r = a - bq\) e \(r \geq 0\). Agora, precisamos mostrar que \(r < b\). Suponha, por contradição, que \(r \geq b\). Então, podemos escrever: \[
r - b = a - bq - b = a - b(q + 1).
\] Como \(r - b \geq 0\), isso implica que \(a - b(q + 1) \geq 0\), o que significa que \(r - b\) pertence ao conjunto \(S\). No entanto, isso contradiz a escolha de \(r\) como o menor elemento de \(S\). Portanto, devemos ter \(r < b\).
Agora, provemos a unicidade de \(q\) e \(r\). Suponha que existam outros inteiros \(q'\) e \(r'\) tais que: \[
a = bq' + r' \quad \text{com } 0 \leq r' \leq r< b.
\] Subtraindo as duas expressões para \(a\), obtemos: \[bq + r = bq' + r' \implies b(q - q') = r' - r.\] Isso implica que \(b\) divide \(r' - r\). No entanto, como \(0 \leq r'\leq r' < b\), a diferença \(r' - r\) deve satisfazer \(0 \leq r' - r < b\). A única maneira de \(b\) dividir \(r' - r\) dentro desse intervalo é se \(r' - r = 0\), ou seja, \(r' = r\). Substituindo isso de volta na equação \(b(q - q') = r' - r\), obtemos \(b(q - q') = 0\), o que implica que \(q - q' = 0\), ou seja, \(q = q'\). Portanto, os inteiros \(q\) e \(r\) são únicos.
Um número inteiro \(a\) é divisível por um número inteiro \(b\) se existe um inteiro \(k\) tal que \(a = bk\). Nesse caso, dizemos que \(b\) é um divisor de \(a\) e que \(a\) é um múltiplo de \(b\). Por exemplo, \(12\) é divisível por \(3\) porque \(12 = 3 \cdot 4\).
Expansão de naturais na base \(b\)
Números naturais são escritos normalmente como sequências de algarismos na base decimal. Por exemplo, a sequência \(1056\) significa o número \[
1\cdot 1000+0\cdot 100+5\cdot 10+6.
\] Mais geralmente, a sequência \([a_na_{n-1}\cdots a_1a_0]\) denota o número \[
\sum_{k=0}^n a_k\cdot 10^k.
\]
É possível fazer a mesma coisa em uma outra base \(b\) assumindo que \(b\geq 2\).
Teorema 13.1 Assuma que \(a\) e \(b\) são números naturais e \(b\geq 2\). Então \(a\) pode ser escrito unicamente na forma \[
a=[a_na_{n-1}\cdots a_0]_b=\sum_{k=0}^n a_kb^k
\] onde \(n\geq 0\) e \(a_k\in\{0,\ldots,b-1\}\) para todo \(k\)
Os números \(a_k\) são chamados de algarismos de \(a\) na base \(b\).
Comprovação. Existência. Usaremos indução por \(a\). Se \(a\in\{0,\ldots,b-1\}\) então \(a\) pode ser escrito como \([a]_b\). Assuma agora que \(a\geq b\) e os números menores que \(a\) podem ser escritos na base \(b\). Usando o Teorema de Divisão de Euclides, escreva \(a=qb+a_0\) onde \(0\leq a_0\leq b-1\). Como \(b\geq 2\), temos que \(q<a\), e a hipótese de indução é válida para \(q\). Portanto existem \(a_n,\ldots,a_1\in\{0,\ldots,b-1\}\) tais que \[
q=[a_na_{n-1}\cdots a_1]_b=\sum_{k=1}^n a_kb^{k-1}
\] e \[
a=bq+a_0=b\left(\sum_{k=1}^n a_kb^{k-1}\right)+a_0=\sum_{k=0}^n a_kb^{k}=[a_na_{n-1}\cdots a_1a_0]_b
\] Então a expressão desejada para \(a\) existe.
Unicidade. Provaremos esta parte também por indução em \(a\). Se \(a\in\{0,\ldots,b-1\}\), então \(a=[a]_b\) é a única expansão de \(a\) na base \(b\). Assuma que \(a\geq b\) e assuma também que todo número menor que \(a\) possui única expansão na base \(b\). Suponha que \(a\) possui duas expansões \[
a=[a_n\cdots a_1a_0]_b=\sum_{k=0}^n a_kb^k
\] e \[
a=[c_m\cdots c_1c_0]_b=\sum_{k=0}^m c_kb^k.
\] Como acima, escreva \(a=qb+r\) onde \(0\leq r\leq b-1\) e note que os números \(q\) e \(r\) são únicos. Pelas duas expressões para o número \(a\) obtemos que \[
a=\sum_{k=0}^n a_kb^k=b\cdot\left(\sum_{k=1}^n a_kb^{k-1}\right)+a_0
\] e \[
a=\sum_{k=0}^m c_kb^k=b\cdot\left(\sum_{k=1}^m c_kb^{k-1}\right)+c_0.
\] Pela unicidade do resto no Teorema de Euclides, obtemos que \(r=a_0=c_0\); ou seja, os últimos algarismos são determinados unicamento.
Agora, \[
q=(a-r)/b=\sum_{k=1}^n a_kb^{k-1}=\sum_{k=1}^m c_kb^{k-1};
\] ou seja \[
q=[a_n\cdots a_1]_b=[c_m\cdots c_1]_b.
\] A hipótese de indução aplica-se para o número \(q\), e assim as as sequências \([a_n\cdots a_1]_b\) e \([c_m\cdots c_1]_b\) são iguais. Portanto as duas expansões para o número \(a\) são iguais como foi afirmado.
Exemplo 13.1 Seguindo a demonstração do teorema anterior, obtemos um algoritmo para determinar a sequência dos dígitos de um número natural em uma base \(b\). Tome o número \(a=168\) e seja \(b=5\).
Passo 1: \[
168=33\cdot 5+3,
\] portanto o último algarismo de \(168\) é \(3\) e os demais algarismos são os algarismos de \(33\).
Passo 2: \[
33 = 6\cdot 5+3.
\] Logo o penúltimo algarismo é \(3\) e os demais algarismos são os algarismos de \(6\).
Passo 3: \[
6=1\cdot 5+1;
\] ou seja, o seguinte algarismo é \(1\) e os demais algarismos são os algarismos de \(1\).
Passo 4: \[
1=0\cdot 5+1
\] que diz que \(1=[1]_5\).
Juntando as peças, obtemos que \(168=[1133]_5\).
Expansão de racionais
Comecemos por um resultado conhecido de cálculo.
Lema 13.5 Se \(|q| <1\), então a série \[
\sum_{n=0}^\infty q^n
\] é convergente e a sua soma é igual a \[
\frac{1}{1-q}.
\]
No bloco anterior, estudamos expansões de números naturais na base \(b\). Escrevemos naturais na base \(b\) como \([a_na_{n-1}\cdots a_1a_0]_b\). Quando \(b=10\), escrevemos o mesmo número como \([a_na_{n-1}\cdots a_1a_0]\) (sem explicitamente indicar a base).
Uma fração decimal (ou expansão decimal) não negativa é uma sequência (possivelmente infinita) de algarismos na forma \([a_na_{n-1}\cdots a_1a_0,a_{-1}a_{-2}\cdots]\) onde \(a_{i}\in\{0,\ldots,9\}\). O número representado pela fração é \[\begin{align*}
a&=\sum_{k=n}^{-\infty}a_k10^k=\sum_{k=0}^n a_k10^k+\sum_{k=1}^{\infty}a_{-k}10^{-k}\\&=
[a_na_{n-1}\cdots a_1a_0]+\sum_{k=1}^{\infty}a_{-k}10^{-k}.
\end{align*}\] A expressão acima mostra que cada fração decimal não negativa pode ser escrita como a soma de um número natural e uma fração decimal na forma \([0,a_{-1}a_{-2}\cdots]\). Como os números naturais foram tratados na unidade anterior, aqui vamos focar apenas frações na forma \([0,a_{-1}a_{-2}\cdots]\). Uma fração natural desta forma pode ser finita ou infinita. Quando a sequência de algarismos depois da vírgula é infinita, então a fração é infinita; caso contrário a fração é finita. Uma fração finita pode ser escrita na forma \([0,a_{-1}a_{-2}\cdots a_{-n}]\). Note que uma fração finita pode ser considerada infinita adicionando uma sequência infinita de zeros e assim nós frequentemente assumimos que as frações analizadas são infinitas.
Lema 13.6 Para qualquer sequência (possivelmente infinita) de algarismos, a expansão \([0,a_{1}a_{2}\cdots]\) representa um número real entre zero e um
Comprovação. PPrecisa provar que a série \[
\sum_{k=1}^\infty a_{k}10^{-k}
\] é convergente e converge a um número entre zero e um. Como \(0\leq a_i\leq 9\) para todo \(i\), obtemos que \[
\sum_{k=1}^\infty a_{k}10^{-k}\leq\sum_{k=1}^\infty 9\cdot 10^{-k}=\frac 9{10}\sum_{k=0}^\infty 10^{-k}=\frac 9{10}\frac 1{1-1/10}=1.
\] Como os termos da série na última linha são não negativas, a conta acima mostra que a série que corresponde à expansão \([0,a_{1}a_{2}\cdots]\) é convergente e converge a um número não negativo menor ou igual a \(1\)
Note que o mesmo número real pode ser escrito de maneiras distintas como fração decimal. Por exemplo, \(1,00\cdots=0,99\cdots\).
Considere a fração decimal \([0,a_{1}a_{2}\cdots]\). Esta fração chama-se periódica se existem \(m\geq 0\) e \(r\geq 1\) tais que \(a_{r+k}=a_k\) para todo \(k> m\). A sequência \([a_1\cdots a_m]\) chama-se pré-período, enquanto a sequência \([a_{m+1}\cdots a_{m+r}]\) chama-se período da fração.
Uma fração periódica com pré-período \([a_1\cdots a_m]\) e período \([a_{m+1}\cdots a_{m+r}]\) tem a forma \[
[0,a_1\cdots a_ma_{m+1}\cdots a_{m+r}a_{m+1}\cdots a_{m+r}\cdots];
\] ou seja, a fração começa com a sequência \([a_1\cdots a_m]\) e depois a sequência \([a_{m+1}\cdots a_{m+r}]\) está se repetindo. Neste caso escrevemos a fração como \[
[0,a_1\cdots a_m\overline{a_{m+1}\cdots a_{m+r}}].
\] Por exemplo \[
1/44=0,02272727\cdots=0,02\overline{27}.
\]
Teorema 13.2 As seguintes afirmações são verdadeiras.
- Toda expansão decimal periódica representa um número racional.
- Se \(a/b\) é um número racional tal que \(0<a<b\), então sua expansão decimal é periódica
Comprovação.
Considere a expansão decimal \[
[0,a_1a_2\cdots]=[0,a_1a_2\cdots a_m\overline{a_{m+1}\cdots a_{m+r}}]
\] e seja \(a\) o número representado por esta expansão. Pelo lema anterior, \(0\leq a\leq 1\). Sejam \(u\) e \(v\) os números naturais \[
u=[a_1a_2\cdots a_m]\quad\mbox{e}\quad v=[a_{m+1}\cdots a_{m+r}].
\] Tem-se que \[\begin{align*}
a&=\sum_{k=1}^\infty a_k10^{-k}=\frac u{10^{m}}+\sum_{k=1}^\infty \frac{v}{10^{m+kr}}\\&=\frac u{10^{m}}+\frac{v}{10^{m+r}}\sum_{k=0}^\infty \frac{1}{10^{kr}}=\frac{u}{10^{m}}+\frac{v}{10^{m+r}}\frac{1}{1-10^{-r}}.
\end{align*}\] Ora note apenas que o número no lado direito da última equação é um número racional.
Assuma que \(0< a<b\) e considere o racional \(q=a/b\). Vamos determinar a sequência de algarismos para \(q\). Seja \(a_0=a\), \(q_0=0\) e escreva, usando o Teorema de Divisão de Euclides, \[
10a_0=q_1b+a_1\quad\mbox{onde}\quad 0\leq a_1<b.
\] Assuma que as sequências \(a_0,\ldots,a_k\) e \(q_0,\ldots,q_k\) são determinadas, e defina \(q_{k+1}\) e \(a_{k+1}\) pela equação \[
10a_k=q_{k+1}b+a_{k+1}\quad\mbox{onde}\quad 0\leq a_{k+1}<b
\] usando o Teorema de Divisão de Euclides.
Afirmamos que a expansão decimal de \(a/b\) é \([0,q_1q_2\cdots]\). Para isso nós precisamos verificar que \[
\sum_{k=1}^\infty q_k10^{-k}\to \frac ab.
\] De fato, nós provaremos que \[
10^k a=\sum_{i=1}^k10^{k-i}q_ib+a_k
\] Para \(k=1\), esta afirmação segue da expressão acima para \(10a_0=10a\). Assuma que esta igualdade é verdadeira para algum \(k\). Então \[\begin{align*}
10^{k+1}a&=10\cdot 10^ka=10\cdot\left(\sum_{i=1}^k10^{k-i}q_ib+a_k\right)
\\&=\sum_{i=1}^{k}10^{k+1-i}q_ib+10a_k\\&=
\sum_{i=1}^{k}10^{k+1-i}q_ib+q_{k+1}b+a_{k+1}\\&=\sum_{i=1}^{k+1}10^{k+1-i}q_ib+a_{k+1}.
\end{align*}\] Então a afirmação é verdadeira para todo \(k\). Segue, para todo \(k\geq 1\), da mesma afirmação que \[
\frac ab=\sum_{i=1}^k10^{-i}q_i+a_k/(10^kb)=[0,q_1\cdots q_k]+\frac{a_k}{10^kb};
\] e assim \[
\frac ab-[0,q_1\cdots q_k]=\frac{a_k}{10^kb}<\frac{b}{10^kb}=10^{-k}.
\] Isso implica que a sequência \([0,q_1\cdots q_k]\) converge para \(a/b\) quando \(k\to\infty\) e então a expansão do número racional \(a/b\) é \([0,q_1q_2\cdots]\).
Finalmente precisamos provar que a expansão \([0,q_1q_2\cdots]\) de \(a/b\) é periódica. Para isso, note que a sequência \(a_1,a_2,\ldots\) é uma sequência de números naturais com \(a_i\in\{0,\ldots,b-1\}\) para todo \(i\). Então vai existir \(m\) e \(r\) tal que \(a_{m+r}=a_m\). Logo \[
q_{m+r+1}b+a_{m+r+1}=10a_{m+r}=10a_m=q_{m+1}b+a_{m+1}.
\] Obtemos pela unicidade na Teorema de Divisão de Euclides que \(q_{m+r+1}=q_{m+1}\) e \(a_{m+r+1}=a_{m+1}\). Similarmente, \(q_{m+r+2}=q_{m+2}\) e \(a_{m+r+2}=a_{m+2}\) e mais geralmente \[
q_{k+r}=q_{k}\quad e \quad a_{k+r}=a_{k}.
\] para todo \(k\geq m+1\). Ou seja, a expansão do número \(a/b\) é periódoca.
Exemplo 13.2 A demonstração do resultado anterior dá um algoritmo para calcular a expansão de um número natural \(a/b\) onde \(0<a<b\). Considere por exemplo o racional \(1/54\). Seguindo a demonstração do teorema para \(a=1\) e \(b=54\), fazemos a seguinte conta.\[\begin{align*}
10a=10=0\cdot 54+10\quad &\Rightarrow\quad q_1=0\mbox{ e }a_1=10\\
10a_1=100=1\cdot 54+46\quad &\Rightarrow\quad q_2=1\mbox{ e }a_2=46\\
10a_2=460=8\cdot 54+28\quad &\Rightarrow\quad q_3=8\mbox{ e }a_3=28\\
10a_3=280=5\cdot 54+10\quad &\Rightarrow\quad q_4=5\mbox{ e }a_4=10\\
10a_4=100=1\cdot 54+46\quad &\Rightarrow\quad q_5=1\mbox{ e }a_5=46
\end{align*}\] Observamos que \(a_4=a_1\) como foi previsto na demonstração do teorema e a computação vai se repetir a partir deste ponto. Obtemos então que \[
\frac 1{54}=0,0\overline{185}.
\]
Obtemos também como consequência do teorema anterior que existem números irracionais no intervalo \([0,1]\). Por exemplo, considere o número \[
a=0,1010010001000010000010000001\cdots.
\] Pelo lema anterior, \(a\) é um número real, mas a sua expansão decimal não é periódoca, portanto este número não é racional.
Exatamente como a expansão dos números naturais pode ser calculada em qualquer base \(d\geq 2\), a expansão dos números racionais também pode ser calculada em bases \(d\) tal que \(d\geq 2\). Os resultados em uma base arbitrária são muito similares aos resultados na base \(d=10\) (caso decimal) e estes detalhes são omitidos. No entanto recomendamos que o leitor traduza os resultados acima para uma base \(d\neq 10\).
Critérios de divisibilidade
Seja \(a\) um número natural escrito na base \(10\) (decimal) como \[
a=[a_na_{n-1}\cdots a_1a_0]_{10}=[a_na_{n-1}\cdots a_1a_0].
\] É bem conhecido que, para alguns valores de \(b\), a divisibilidade de \(a\) por \(b\) pode ser determinado olhando apenas os dígitos de \(a\).
Exercício 13.1 Demonstre que para todo \(i\geq 0\), existe \(q_i\in\N_0\) tal que \(10^i=3q_i+1\)
Teorema 13.3 (Critérios de divisibilidade) As seguintes afirmações são verdadeiras para um número natural \(a=[a_na_{n-1}\cdots a_1a_0]\) escrito na base decimal.
- \(2\mid a\) se e somente se \(2\mid a_0\);
- \(3\mid a\) se e somente se \(3\mid a_n+a_{n-1}+\cdots+a_0\);
- \(4\mid a\) se e somente se \(4\mid [a_1a_0]\);
- \(5\mid a\) se e somente se \(5\mid a_0\);
- \(7\mid a\) se e somente se \(7\mid [a_n\cdots a_1]-2a_0\);
- \(8\mid a\) se e somente se \(8\mid [a_2a_1a_0]\);
- \(9\mid a\) se e somente se \(9\mid a_n+a_{n-1}+\cdots+a_0\);
- \(10\mid a\) se e somente se \(10\mid a_0\) (ou seja, \(a_0=0\));
- \(11\mid a\) se e somente se \(11\mid (-1)^na_n+(-1)^{n-1}a_{n-1}+\cdots-a_1+a_0\);
Comprovação. Demonstraremos algumas destas afirmações, o resto será exercício.
Considere que \[\begin{align*}
a&=[a_na_{n-1}\cdots a_1a_0]=\sum_{k=0}^n10^ka_k=10\left(\sum_{k=1}^n10^{k-1}a_k\right)+a_0\\&=10q+a_0
\end{align*}\] com \[
q=\sum_{k=1}^n10^{k-1}a_k\in\mathbb N.
\] Como \(2\mid 10\), obtemos que o número \(a\) é divisível por \(2\) se e somente se o algarismo \(a_0\) é divisível por \(2\).
Temos, pelo exercício antes do teorema, para todo \(i\geq 0\), existe \(q_i\in\N_0\) tal que \(10^i=3q_i+1\). Agora considere \[\begin{align*}
a&=[a_n\cdots a_1a_0]=\sum_{k=0}^n 10^ka_k=\sum_{k=0}^n (3q_k+1)a_k\\&=3\sum_{k=0}^nq_ka_k+
\sum_{k=0}^na_k.
\end{align*}\] No última expressão, a primeira parcela é um múltiplo de \(3\). Logo \(a\) é divisível por \(3\) se e somente se a segunda parcela na última expressão é divisível por \(3\), mas esta segunda parcela é justamente a soma dos dígitos de \(a\).