90  Corpos de decomposição e corpos finitos

90.1 Corpos de decomposição

Lema 90.1 Seja \(\F\) um corpo e \(f(x)\in\F[x]\) com grau maior ou igual a \(1\).

  1. Existe uma extensão finita \(\E:\F\) tal que \(f(x)\) possui raiz em \(\E\).
  2. Existe uma extensão \(\K:\F\)  finita tal que \(f(x)\) pode ser escrito na forma \[ f(x)=\alpha_0(x-\alpha_1)\cdots(x-\alpha_m). \]

Comprovação. 1. Escreva \(f(x)=g_1(x)\cdots g_m(x)\) onde os \(g_i(x)\in\F[x]\) são polinômios irredutíveis (Teorema 34.2). Defina \(\E=\F[x]/(g_1(x))\)  e observe que \(\E\) é um corpo (Teorema 88.1) e que \(\alpha=x+(g_1(x))\in\E\) é uma raiz de \(g_1(x)\) e portanto \(\alpha\) é raiz de \(f(x)\).

  1. Provamos por indução no grau de \(f(x)\). Se \(f(x)\) tem grau 1, então podemos tomar \(\K=\F\)  e a afirmação é verdadeira. Assuma que a afirmação é verdadeira para polinômios de grau menor que \(k\) e seja \(f(x)\in\F[x]\) um polinômio de grau \(k\). Pela afirmação 1., existe uma extensão finita \(\E\) tal que \(f(x)\) possui raiz em \(\E\) e assim \(f(x)=(x-\alpha_1)g(x)\) onde \(\alpha\in\E\) e \(g(x)\in\E[x]\) é um polinômio de grau \(k-1\). Pela hipótese de indução, existe uma extensão finita \(\K\) de \(\E\) tal que \[ g(x)=\alpha_0(x-\alpha_2)\cdots(x-\alpha_k) \] com \(\alpha_0,\alpha_2,\ldots,\alpha_k\in\K\). Ora, escrevemos \[ f(x)=(x-\alpha_1)g(x)=\alpha_0(x-\alpha_1)(x-\alpha_2)\cdots (x-\alpha_k). \] Como as extensões \(\K:\E\) e \(\E:\F\) são finitas, a extensão \(\K:\F\) também é finita.

Definição 90.1 Seja \(\F\) um corpo e seja \(f(x)\in\F[x]\) um polinômio com grau maior ou iguai a um. Seja \(\K\) uma extensão (finita) de \(\F\) tal que \[ f(x)=\alpha_0(x-\alpha_1)\cdots(x-\alpha_k) \] e considere \(\E=\F(\alpha_1,\ldots,\alpha_k)\). O corpo \(\E\) é chamado de um corpo de decomposição para o polinômio \(f(x)\). Note que \(\E\) é o menor subcorpo de \(\K\) que contém todas as raízes de \(f(x)\); ou seja, ele é o menor subcorpo de \(\K\) sobre o qual \(f(x)\) se decompõe para produto de polinômios lineares (de grau um).

O corpo de decomposição de um polinômio não é único, pois depende do corpo \(\K\). No entanto, o seguinte resultado implica que ele é determinado unicamente a menos de isomorfismos.

Nos seguintes resultados vamos usar a seguinte observação. Se \(\varphi:\F_1\to\F_2\) é um isomorfismo de corpos, então \(\varphi\) induz um isomorfismo \(\F_1[x]\to\F_2[x]\) dos anéis de polinômios \[ \alpha_0+\alpha_1x+\cdots+\alpha_kx^k\mapsto \varphi(\alpha_0)+\varphi(\alpha_1)x+\cdots+\varphi(\alpha_k)x^k. \] Arriscando confusão, o isomorfismo \(\F_1[x]\to\F_2[x]\) será denotado também por \(\varphi\).

Lema 90.2 Sejam \(\F_1\) e \(\F_2\) corpos e assuma que \(\varphi:\F_1\to\F_2\) é um isomorfismo. Seja  \(f(x)\in\F_1[x]\) um polinômio irredutível e considere a imagem \(\varphi(f(x))\in\F_2[x]\) (que também é irredutível). Suponha que \(\alpha\) e \(\beta\) são raízes de \(f(x)\) e \(\varphi(f(x))\) em alguma extensão de \(\F_1\) e \(\F_2\), respetivamente. Então existe um ismorfismo \(\psi:\F_1(\alpha)\to\F_2(\beta)\) tal que \(\psi|_{\F_1}=\varphi\) e \(\psi(\alpha)=\beta\).

Comprovação. Adaptar a demonstração do Corolário 89.1.

Teorema 90.1 Sejam \(\F_1\) e \(\F_2\) corpos e seja \(\varphi:\F_1\to\F_2\) um isomorfismo. Seja \(f(x)\in\F_1[x]\) não constante e assuma que \(\K_1\) e \(\K_2\) são corpos de decomposição dos polinômios \(f(x)\) e \(\varphi(f(x))\), respetivamente. Então existe um isomorfismo \(\psi: \K_1\to \K_2\) tal que \(\psi|_{\F_1}=\varphi\).

Comprovação. Por indução no grau de \(f(x)\). Se \(\mbox{grau}\,f(x)=1\), então \(\K_1=\F_1\) e \(\K_2=\F_2\) e podemos tomar \(\psi=\varphi\). Assuma que o lema é válido para polinômios de grau menor que \(k\geq 2\) e seja \(f(x)\in\F_1[x]\) um polinômio de grau \(k\). Sejam \(\alpha\in\K_1\) e \(\beta\in\K_2\) raízes de \(f(x)\) e \(\varphi(f(x))\), respetivamente, e defina os corpos \(\E_1=\F_1(\alpha)\) e \(\E_2=\F_2(\beta)\). O lema anterior implica que existe um isomorfismo \(\vartheta:\F_1(\alpha_1)\to\F_2(\alpha_2)\) tal que  \(\vartheta|_{\F_2}=\varphi\) e \(\vartheta(\alpha)=\beta\). Escreva \(f(x)=(x-\alpha)f_1(x)\) e \[ \varphi(f(x))=\vartheta(f(x))=\vartheta((x-\alpha)f_1(x))=(x-\beta)\vartheta(f_1(x)). \] Note que \(\K_1\) é corpo de decomposição de \(f_1(x)\) sobre \(\E_1=\F_1(\alpha)\) e \(\K_2\) é corpo de decomposição de \(\varphi(f_1(x))\) sobre \(\E_2=\F_2(\beta)\). Pela hipótese de indução, existe um isomorfismo \(\psi:\K_1\to\K_2\) tal que \(\psi|_{\F_1(\alpha)}=\vartheta\), e portanto \(\psi|_{\F_1}=\vartheta|_{\F_1}=\varphi\).

Corolário 90.1 Sejam \(\F\) um corpo, \(f(x)\in\F[x]\) um polinômio não constante, e sejam \(\K_1\) e \(\K_2\) corpos de decomposição de \(f(x)\). Então existe \(\varphi:\K_1\to \K_2\) isomorfismo tal que \(\varphi(\alpha)=\alpha\) para todo \(\alpha\in\F\).

90.2 Corpos finitos

Exercício 90.1 Seja \(p\) um primo e \(d\geq 1\). Mostre que \(x^{p^d}-x\in\F_p[x]\) não tem raízes múltiplas em nenhuma extensão de \(\F_p\).

Exercício 90.2 Seja \(\F\) um corpo de caraterística \(p\).

  1. Mostre que \[ (x+y)^{p^d}=x^{p^d}+y^{p^d} \] vale para todo \(x,y\in\F\) e \(d\geq 0\).
  2. Deduza que \(\varphi:\F\to \F\) é um homomorfismo de \(\F\).
  3. Mostre que \(\varphi\) é injetivo e se \(\F\) é finito, então \(\varphi\) é sobrejetivo.
  4. Exiba um exemplo para mostrar que \(\varphi\) pode não ser sobrejetivo no caso quando \(\F\) é um corpo infinito de caraterística \(p\).

Teorema 90.2 As seguintes afirmações são verdadeiras.

  1. Se \(\F\) é um corpo finito então \(|\F|=p^d\) com algum primo \(p\) e \(d\geq 1\).
  2. Se \(p\) é um primo e \(d\geq 1\), então existe um corpo \(\F\) com \(p^d\) elementos e \(\F\) é um corpo de decomposição do polinômio \(x^{p^d}-x\in\F_p[x]\).
  3. Se \(\F_1\) e \(\F_2\) são corpos finitos tais que \(|\F_1|=|\F_2|\) então \(\F_1\) e \(\F_2\) são isomorfos.

Comprovação.

  1. Como \(\F\) é finito, a sua caraterística é um primo \(p\) e tem-se que \(\F\) é uma extensão de \(\F_p\). Tomando \(d=\dim_{\F_p}\F\), temos que \(|\F|=p^d\).

  2. Ponha \(q=p^d\), seja \(\K\) o corpo de decomposição do polinômio \(g(x)=x^{q}-x\) e seja \(\F\) o conjunto de raízes de  \(g(x)\) em \(\K\). Note que se \(\alpha,\beta\in\F\), então \(\alpha^q=\alpha\) e \(\beta^q=\beta\) e temos que \[ (\alpha\pm\beta)^q=(\alpha^q\pm\beta)^{p^d}=\alpha\pm\beta \quad\mbox{e}\quad(\alpha/\beta)^q=\alpha^q/\beta^q=\alpha/\beta. \] Claramente, \(0\in\F\) e \(1\in\F\). Portanto \(\F\) é um corpo e como \(\K\) foi corpo de decomposição, segue que  \(\F=\K\). Além disso, como, pelo exercício anterior, \(g(x)\) não possui raízes múltiplas em \(\K\), temos que \(|\F|=q=p^d\) e \(\F\) é um corpo de ordem desejada.

  3. Se \(\E\) é um corpo arbitrário de \(q=p^d\) elementos, então \(\E^{*}=\E\setminus\{0\}\) é um grupo de \(q-1\) elementos, e o Teorema de Lagrange implica que \(x^q=x\) para todo \(x\in\E^*\). Mas esta equação vale para \(0\in\E\) também. Segue que \[ x^q-x=\prod_{\alpha\in\E}(x-\alpha) \] e portanto \(\E\) é um corpo de decomposição de \(x^q-x\). Em particular \(\E\) é isomorfo ao corpo \(\F\) no parágrafo anterior e assim verificamos também a afirmação 3.

Se \(q=p^d\) com algum primo \(p\), então existe (a menos de isomorfismo) um único corpo de cardinalidade \(q\) e este corpo é denotado por \(\F_q\).

O seguinte teorema segue diretamente de um resultado que provamos quando estudamos grupos cíclicos.

Teorema 90.3 Se \(\F\) é um corpo finito, então \(\F^*\) é um grupo cíclico.

Corolário 90.2 Seja \(\E:\F\) uma extensão de corpos finitos. Então \(\E=\F(\alpha)\) com algum \(\alpha\in\E\). Em particular, existe um polinômio irredutível \(f(x)\in\F[x]\) tal que \(\E\cong \F[x]/(f(x))\). Em particular se \(\E\) é um corpo de \(p^d\) elementos, então \(\E\cong \F_p[x]/(f(x))\) onde \(f(x)\in\F_p[x]\) é um polinômio irredutível de grau \(d\).

Comprovação. O grupo \(\E^*\) é cíclico e seja \(\alpha\) um gerador de \(\E^*\). Então \(\F(\alpha)=\E\). Tomando \(f(x)=m_\alpha(x)\in\F[x]\), temos que \(\E=\F(\alpha)\cong \F[x]/(f(x))\).

Uma consequência particular do corolário anterior é que para todo \(p\) primo e para todo \(d\) natural, existe um polinômio irredutível \(f(x)\in\F_p[x]\) de grau \(d\). O corpo \(\F_{p^d}\) pode ser construído como \(\F_p[x]/(f(x))\).