47  Raízes e irredutibilidade

Seja \(\F\) um corpo. Lembre que \(\alpha\in\F\) é raiz de um polinômio \(f(x)\in\F[x]\) se \(f(\alpha)=0\).

Lema 47.1 Seja \(f(x)\in\F[x]\setminus\{0\}\) um polinômio e \(\alpha\in\F\). Então existe um polinômio \(q(x)\in\F[x]\) tal que \[ f(x)=q(x)(x-\alpha)+f(\alpha). \] Em particular, \(x-\alpha\mid f(x)\) se e somente se \(f(\alpha)=0\) (ou seja, \(\alpha\) é raiz do polinômio \(f(x)\))

Comprovação. Use o Teorema de Divisão de Euclides para escrever \[ f(x)=q(x)(x-\alpha)+\beta \] com \(\beta\in\F\). Substituindo \(\alpha\) na equação anterior, obtemos que \[ f(\alpha)=\beta. \] Para provar a segunda afirmação, observe que \(\alpha\) é raiz do polinômio \(f(x)\) se e somente se \(f(\alpha)=0\) e isso vale se e somente se \(f(x)=q(x)(x-\alpha)\) com algum \(q(x)\in\F[x]\). Esta última afirmação é equivalente a dizer que \(x-\alpha\mid f(x)\)

Corolário 47.1 Seja \(f(x)\in\F[x]\setminus\{0\}\) um polinômio. O número das raízes de \(f(x)\) em \(\F\) é menor ou igual a \(\grau{f(x)}\)

Comprovação. Fazemos indução pelo \(\grau{f(x)}\). Se \(\grau{f(x)}=0\), então \(f(x)=\alpha\) com \(\alpha\in\F\setminus\{0\}\) e \(f(x)\) não possui raízes em \(\F\) e assim a afirmação é verdadeira. Assuma que um polinômio de \(\F[x]\) de grau \(k-1\) possui no máximo \(k-1\) raízes em \(\F\) e seja \(f(x)\in\F[x]\) com grau \(k\). Se \(f(x)\) não possui raízes em \(\F\) então a afirmação do corolário é verdadeira para \(f(x)\). Assuma que \(\alpha\in\F\) é raiz de \(f(x)\). Então \(f(x)=(x-\alpha)g(x)\) com \(\grau{g(x)}=k-1\). Se \(\beta\in\F\setminus\{\alpha\}\) é raiz de \(f(x)\), então \[ 0=f(\beta)=(\beta-\alpha)g(\beta) \] e, como \(\beta-\alpha\neq 0\), \(g(\beta)=0\). Logo \(\beta\) precisa ser raiz de \(g(x)\). Obtemos assim que as raizes de \(f(x)\) são \(\alpha\) e as raízes de \(g(x)\). Pela hipótese de indução, \(g(x)\) tem no máximo \(k-1\) raízes, portanto \(f(x)\) tem no máximo \(k\) raízes

Teorema 47.1 (O Teorema fundamental da Álgebra) Seja \(f(x)\in\C[x]\) um polinômio de grau maior ou igual a \(1\). Então \(f(x)\) possui raiz em \(\C\)

Teorema 47.2 Seja \(f(x)\in\C[x]\) um polinômio mônico de grau \(k\geq 1\). Então existem \(\alpha_1,\ldots,\alpha_k\in\C\) tais que \[ f(x)=(x-\alpha_1)(x-\alpha_2)\cdots(x-\alpha_k). \]

Comprovação. Vamos fazer indução em \(k\). Se \(k=1\), então \(f(x)=x-\alpha\) (\(f(x)\) é mônico), então a afirmação está verdadeira. Assuma que a afirmação está válida para polinômios de grau menor que \(k\) e seja \(\grau{f(x)}=k\). Pelo Teorema Fundamental da Álgebra, \(f(x)\) possui raiz \(\alpha_k\in\C\) e assim \(x-\alpha_k\mid f(x)\) pelo lema anterior. Escreva \[ f(x)=(x-\alpha_k)q(x) \] e note que \(q(x)\) é mônico e \(\grau{q(x)}=k-1\). Pela hipótese da indução, existem \(\alpha_1,\ldots,\alpha_{k-1}\in\C\) tais que \[ q(x)=(x-\alpha_1)\cdots (x-\alpha_{k-1}). \] Portanto \[ f(x)=q(x)(x-\alpha_k)=(x-\alpha_1)\cdots(x-\alpha_{k-1})(x-\alpha_k). \]

Na decomposição dada pelo teorema anterior os escalares \(\alpha_1,\ldots,\alpha_k\) são as raízes complexas de \(f(x)\) contadas com multiplicidade. Isso quer dizer que uma raiz pode ocorrer várias vezes nesta lista.

Exemplo 47.1 Considere o polinômio \[ f(x)=x^{n-1}+x^{n-2}+\cdots+x+1\in\C[x] \] com \(n\geq 2\). Note que \(x^n-1=(x-1)f(x)\) e assim as raízes de \(f(x)\) são os números \(\alpha\in\C\setminus\{1\}\) tais que \(\alpha^n=1\). Estes números são \(\alpha_1,\ldots,\alpha_{n-1}\) onde \[ \alpha_k=\exp(2k\pi i/n)=\cos(2k\pi/n)+i\,\mbox{sen}(2k\pi/n). \] Assim \[\begin{align*} f(x)&=x^{n-1}+x^{n-2}+\cdots+x+1\\ &=\prod_{k=1}^{n-1}(x-\alpha_k)\\ &=\prod_{k=1}^{n-1}(x-\exp(2k\pi i/n))\\ &=\prod_{k=1}^{n-1}(x-\cos(2k\pi/n)-i\,\mbox{sen}(2k\pi/n)) \end{align*}\]

Lembre que se \(z=a+bi\in\C\), então o conjugado complexo \(\overline z\) de \(z\) está definido como \[ \overline z=a-bi. \]

Exercício 47.1 Demonstre para \(z_1,z_2\in\C\) que

  • \(\overbar{z_1+z_2}=\overline{z_1}+\overline{z_2}\);
  • \(\overline{z_1z_2}=\overline{z_1}\cdot\overline{z_2}\);
  • \(\overline{z_1}=z_1\) se e somente se \(z_1\in\R\).

Lema 47.2 Seja \(f(x)\in\R[x]\) e seja \(\alpha\in\C\). Se \(\alpha\) raiz de \(f(x)\), então \(\bar\alpha\) também é

Comprovação. Seja \[ f(x)=\alpha_nx^n+\cdots+\alpha_1x+\alpha_0 \] e assuma que \(\alpha\in\C\) tal que \(f(\alpha)=0\). Então, usando o exercício anterior, obtemos que \[\begin{align*} 0&=\overline 0=\overline{f(\alpha)}=\overline{\alpha_n\alpha^n+\cdots+\alpha_1\alpha+\alpha_0}\\&= \alpha_n\overline \alpha^n+\cdots+\alpha_1\overline \alpha+\alpha_0. \end{align*}\] Logo \(f(\overline\alpha)=0\)

Seja \(f(x)=x^2+\alpha x+\beta\in\R[x]\). Lembre que o discriminante \(\Delta\) de \(f(x)\) é definido como \(\Delta=\alpha^2-4\beta\). Ademais, \(f(x)\) possui duas raízes distintas em \(\R\) se \(\Delta > 0\), \(f(x)\) possui uma única raiz em \(\R\) se \(\Delta=0\) e \(f(x)\) não possui raízes em \(\R\) se \(\Delta < 0\).

Teorema 47.3 Seja \(f(x)\in\R[x]\) um polinômio mônico de grau \(k\geq 1\). Então \(f(x)\) pode ser escrito na forma \[ f(x)=(x-\alpha_1)\cdots (x-\alpha_s)(x^2+\beta_1x+\gamma_1)\cdots (x^2+\beta_rx+\gamma_r) \] onde \(s+2r=k\), \(\alpha_i,\beta_j,\gamma_\ell\in\R\) com \(\beta_i^2-4\gamma_i < 0\) para todo \(i\in\{1,\ldots,r\}\)

Comprovação. Usaremos indução por \(k\). Se \(k=1\), então \(f(x)=x-\alpha\) com algum \(\alpha\in\R\) e o resultado está válido. Assuma que o teorema está verdadeiro para polinômios \(f(x)\in\F[x]\) com \(\grau{f(x)} < k\) e seja \(f(x)\in\R[x]\) um polinômio de grau \(k\). Pelo Teorema Fundamental da Álgebra, existe \(\alpha\in\C\) tal que \(f(\alpha)=0\).

Se \(\alpha\in\R\), então \(x-\alpha\mid f(x)\) e \(f(x)=(x-\alpha)q(x)\) com \(q(x)\in\R[x]\) mônico e \(\grau{q(x)}=k-1\). Pela hipótese da indução, \[ q(x)=(x-\alpha_1)\cdots (x-\alpha_s)(x^2+\beta_1x+\gamma_1)\cdots (x^2+\beta_rx+\gamma_r) \] com \(s+2r=k-1\) e \(\beta_i^2-4\gamma_i < 0\) para todo \(i\). Assim \[\begin{align*} f(x)&=(x-\alpha)q(x)\\&=(x-\alpha)(x-\alpha_1)\cdots(x-\alpha_s)(x^2+\beta_1x+\gamma_1)\cdots (x^2+\beta_rx+\gamma_r). \end{align*}\] com \(\alpha_i,\beta_j,\gamma_\ell\in\R\) e \(\beta_i^2-4\gamma_i < 0\) para todo \(i\).

Se \(\alpha\not\in\R\), então \(f(\overline\alpha)=0\) e \[ (x-\alpha)(x-\overline\alpha)\mid f(x). \] Note que \[ (x-\alpha)(x-\overline\alpha)=x^2-(\alpha+\overline\alpha)x+\alpha\overline\alpha\in\R[x], \] pois se \(\alpha=a+bi\), então \(\overline\alpha=a-bi\) e assim \[\begin{align*} \alpha+\overline\alpha&=2a\in\R\\ \alpha\overline\alpha&=a^2+b^2\in\R. \end{align*}\] Portanto \[ (x-\alpha)(x-\overline\alpha)=x^2+\beta+\gamma\in\R[x] \] com \[\begin{align*} \beta&=-\alpha-\overline{\alpha}=-2a; \\ \gamma&=\alpha\cdot\overline{\alpha}=a^2+b^2 \end{align*}\] é um polinômio sem raízes em \(\R\) e assim \(\beta^2-4\gamma < 0\). Escreva \(f(x)=(x^2+\beta+\gamma)q(x)\) com \(q(x)\in\R[x]\) mônico e \(\grau{g(x)}=k-2\). Pela hipótese da indução, \[ q(x)=(x-\alpha_1)\cdots (x-\alpha_s)(x^2+\beta_1x+\gamma_1)\cdots (x^2+\beta_rx+\gamma_r) \] com \(\alpha_i,\beta_i,\gamma_i\in\R\), \(k-2=s+2r\) e $_i^2-4_i < 0 $ para todo \(i\geq 1\). Ora, \[ f(x)=(x-\alpha_1)\cdots (x-\alpha_s)(x^2+\beta_1x+\gamma_1)\cdots (x^2+\beta_rx+\gamma_r)(x^2+\beta x+\gamma) \] como foi afirmado.

Na decomposição dada pelo teorema anterior os escalares \(\alpha_1,\ldots,\alpha_s\) são as raízes reais de \(f(x)\) contadas com multiplicidade. Isso quer dizer que uma raiz pode ocorrer várias vezes nesta lista. No caso de polinômios sobre \(\R\), o número das raízes de \(f(x)\) pode ser menor que \(\grau{f(x)}\).

Exemplo 47.2 Considere o polinômio \[ f(x)=x^{n-1}+x^{n-2}+\cdots+x+1\in\R[x] \] com \(n\geq 2\). No exemplo anterior determinamos as raízes complexas de \(f(x)\). Se \(n\) for par, então \(f(x)\) possui uma única raiz real, nomeadamente o \(-1\), enquanto se \(n\) for ímpar, então \(f(x)\) não possui raiz real. Denotando por \(\alpha_k\) a \(k\)-ésima raiz complexa de \(f(x)\) como no exemplo anterior, temos, para \(k\leq n/2\) que \[ \overline{\alpha_k}=\alpha_{n-k}. \] Para \(k\leq n/2\), seja \[ \beta_k=-\alpha_k-\overline{\alpha_k}=-2\cos(2k\pi /n) \] e note que \[ \alpha_k\cdot \overline{\alpha_k}=\cos^2(2k\pi /n)+\mbox{sen}^2(2k\pi /n)=1. \] Assim obtemos a seguinte decomposição. Se \(n\) for par, \[\begin{align*} f(x)&=(x+1)\prod_{k=1}^{(n-2)/2}(x^2+\beta_kx+1)\\&=(x+1)\prod_{i=1}^{(n-2)/2}(x^2-2\cos(2k\pi/n)x+1); \end{align*}\] se \(n\) for ímpar, então \[\begin{align*} f(x)&=\prod_{k=1}^{(n-1)/2}(x^2+\beta_kx+1)\\&=\prod_{i=1}^{(n-1)/2}(x^2-2\cos(2k\pi/n)x+1). \end{align*}\]

Corolário 47.2 Um polinômio \(f(x)\in\R[x]\) de grau ímpar possui raiz em \(\R\)

Comprovação. Se \(\grau{f(x)}\) é impar, então a sua decomposição dada pelo teorema anterior possui pelo menos um fator na forma \(x-\alpha\) com \(\alpha\in\R\) e assim \(\alpha\) é raiz de \(f(x)\)