58  Formas \(k\)-lineares e o determinante de operadores

58.1 Formas \(k\)-lineares

Definição 58.1 Sejam \(V\) e \(W\) espaços vetoriais sobre \(\F\), \(k\geq 1\), e considere o produto cartesiano \(V^k=V\times \cdots\times V\) de \(k\) cópias de \(V\). Dizemos que uma aplicação \(f:V^k\to W\) é \(k\)-linear se ela é linear em todas as variáveis. Em outras palávras, \[ f(v_1,\ldots,\alpha v_i+\beta w,\ldots v_k)=\alpha f(v_1,\ldots,v_i,\ldots v_k)+\beta f(v_1,\ldots,w,\ldots v_k) \] vale para todo \(i\in\{1,\ldots,k\}\), \(v_i\in V\) e \(w\in V\). Uma aplicação \(V^k\to \F\) \(k\)-linear é chamada de forma (ou funcional) \(k\)-linear.

Exemplo 58.1 Uma forma \(1\)-linear é simplesmente uma forma linear \(V\to \F\). Uma aplicação ou forma \(2\)-linear é frequentemente chamada de bilinear, enquanto uma aplicação ou forma \(3\)-linear é chamada de trilinear.

Se \(V=\R^n\), então o produto interno \(\langle\cdot ,\cdot\rangle\) é bilinear. Por outro lado, se \(V=\C^n\), então o produto interno \(\langle\cdot ,\cdot\rangle\) não é bilinear (porque?, consulte a Definição 67.2). Se \(V=\F^n\), então a aplicação \[ d:V^n\to \F,\quad d(a_1,\ldots,a_n)=\det A, \] onde \(A\) é a matriz formada pelas linhas \(a_1,\ldots,a_n\), é \(n\)-linear.

Para \(V, W\) espaços sobre \(\F\) e \(k\geq 1\), o conjunto das aplicações \(k\)-lineares é um espaço vetorial sobre \(\F\). Este espaço é denotado por \(L^k(V,W)\). O espaço \(L^k(V,\F)\) é escrito como \(L^k(V)\). Note que \(V^*=L^1(V)\).

Lema 58.1 Sejam \(V\) e \(W\) espaços vetoriais sobre \(\F\) e \(B\) uma base de \(V\). Seja \(f_0\) um mapa arbitrário \(f_0:B^k\to W\). Existe uma única aplicação \(k\)-linear \(f:V^k\to W\) tal que \(f|_{B^k}=f_0\).

Comprovação. Exercício.

Exemplo 58.2 Seja \(V=\R^n\) com a base canônica \(e_1,\ldots,e_n\). Está bem conhecido que o produto interno \(\langle \cdot,\cdot\rangle\) está determinado pelos valores de \(\langle e_i,e_j\rangle\) com \(i,j\in\{1,\ldots,n\}\). De fato, se \(v,w\in\R^n\) (vetores linhas) e \(v=(\alpha_1,\ldots,\alpha_n)\), \(w=(\beta_1,\ldots,\beta_n)\), então \[ \langle v,w\rangle=\left\langle \sum_{i=1}^n\alpha_je_i,\sum_{j=1}^n\beta_j e_j\right\rangle=\sum_{i,j=1}^n\alpha_i\beta_j\langle e_i,e_j\rangle=\sum_{i=1}^n\alpha_i\beta_i. \] Ou seja, as igualdades \(\langle e_i,e_j\rangle=\delta_{i,j}\) (\(\delta\) de Kronecker) determinam o produto interno \(\langle\cdot,\cdot\rangle\) completamente.

Exercício 58.1 Assumindo que \(\dim V=m\) e \(\dim W=n\), determine \(\dim L^k(V,W)\).

Definição 58.2 Seja \(f:V^k\to W\) uma aplicação \(k\)-linear. A aplicação \(f\) é dita simétrica se \[\begin{align*} &f(v_1,\ldots,v_{i-1},v_i,v_{i+1},\ldots,v_{j-1},v_j,v_{j+1},\ldots,v_n)\\&=f(v_1,\ldots,v_{i-1},v_j,v_{i+1},\ldots,v_{j-1},v_i,v_{j+1},\ldots,v_n) \end{align*}\] para todo \(i,j\in\{1,\ldots,k\}\) e \(v_i\in V\). A aplicação \(f\) é dita alternada se \[ f(v_1,\ldots,v_n)=0 \] sempre que \(v_i\in V\) e \(v_i=v_j\) com algum \(i\neq j\). Os espaços de aplicações \(k\)-lineares simétricas e alternadas \(V^k\to W\) estão denotados por \(S^k(V,W)\) e \(A^k(V,W)\), respetivamente. Escrevemos também \(S^k(V)=S^k(V,\F)\) e \(A^k(V,\F)=A^k(V)\).

Exemplo 58.3 O produto interno \(\langle\cdot,\cdot\rangle\) em \(\R^n\) é uma forma simétrica bilinear. O determinante de uma matriz pode ser visto como uma aplicação \(n\)-linear \(d:(\F^n)^n\to\F\) é alternada.

Lema 58.2 Seja \(f:V^k\times W\) uma aplicação \(k\)-linear alternada. As seguintes afirmações são válidas:

  • \(f(\ldots,v_i,\ldots,v_j,\ldots)=-f(\ldots,v_j,\ldots,v_i,\ldots)\)
  • Se \(v_1,\ldots,v_k\) são linearmente dependentes, então \(f(v_1,\ldots,v_k)=0\).

Comprovação.

  1. Calculamos que \[\begin{align*} 0&=f(\ldots,v_i+v_j,\ldots,v_i+v_j,\ldots)\\&=f(\ldots,v_i,\ldots,v_i,\ldots)+f(\ldots,v_i,\ldots,v_j,\ldots)\\&+f(\ldots,v_j,\ldots,v_i,\ldots)+f(\ldots,v_j,\ldots,v_j,\ldots)\\&=f(\ldots,v_i,\ldots,v_j,\ldots)+f(\ldots,v_j,\ldots,v_i,\ldots). \end{align*}\]

  2. Se os \(v_i\) são L.D., então algum \(v_i\) é combinação linear dos demais vetores no sistema. Assuma que \(v_1\) é combinação linear de \(v_2,\ldots,v_k\). Ou seja, \[ v_1=\alpha_2 v_2+\cdots+\alpha_k v_k. \] Então \[\begin{align*} &f(v_1,v_2,\ldots,v_k)\\&= f(\alpha_2 v_2+\cdots+\alpha_k v_k,v_2,\ldots,v_k)\\&= \alpha_2 f(v_2,v_2,\ldots,v_k)+\cdots+\alpha_k f(v_k,v_2,\ldots,v_k)=0. \end{align*}\]

58.2 O sinal de uma permutação

Se \(X\) é um conjunto, uma aplicação \(\sigma:X\to X\) invertível (ou seja, sobrejetiva e injetiva) é chamada de permutação de \(X\). A composição de permutações de \(X\) é uma permutação de \(X\). Uma transposição de \(X\) é uma permutação que troca \(i,j\in X\) distintos e deixa os demais elementos de \(X\) fixados. Quando \(X\) é finito, qualquer permutação de \(X\) pode ser obtida como uma composição de transposições (qualquer configuração de um baralho pode ser atingida trocando duas cartas e repetindo tais trocas). É um fato na teoria das permutações que se \(\sigma:X\to X\) é uma permutação e \[ \sigma=\sigma_1\circ\cdots\circ \sigma_m \] onde os \(\sigma_i\) são transposições, então a paridade do número \(m\) depende apenas da permuação \(\sigma\). Se a paridade de \(m\) é par, então a permutação \(\sigma\) é par, caso contrário \(\sigma\) é ímpar. Além disso, escrevemos \[ (-1)^\sigma=\left\{\begin{array}{cc} 1 & \mbox{se $\sigma$ for par;}\\ -1 & \mbox{se $\sigma$ for ímpar.}\end{array}\right. \]

Exemplo 58.4 Considere a seguinte permutação \(\sigma\) do conjunto \(\{1,2,3,4\}\): \[\left [ \begin{array}{cccc} 1 & 2 & 3 & 4\\ 2 & 3 & 4 & 1 \end{array}\right]. \] Se \(i,j\in\{1,2,3,4\}\), então denotamos por \((i,j)\) a transposição que troca \(i\) e \(j\) e deixa os demais elementos fixados. Então pode verificar com conta simples que \[ \sigma=(1,4)\circ (1,3)\circ(1,2)=(2,4)\circ(1,2)\circ (1,3)\circ(1,4)\circ(2,4). \] Ou seja, a mesma permutação \(\sigma\) pode ser escrita como uma composição de \(3\) transposições, mas também como uma composição de \(5\) transposições. Portanto que \((-1)^\sigma=-1\).

58.3 Aplicações \(k\)-lineares alternadas

Corolário 58.1 Seja \(V\) um espaço vetorial de dimensão \(n\) com base \(B=\{b_1,\ldots,b_n\}\) e \(f:V^k\to W\) uma aplicação \(k\)-linear alternada.

  • Se \(v_1,\ldots,v_k\in V\) e \(\sigma\) é uma permutação do conjunto \(\{1,\ldots,k\}\), então \[ f(v_{\sigma(1)},\ldots,v_{\sigma(k)})=(-1)^\sigma f(v_1,\ldots,v_k). \]
  • \(f\) está determinada pelos valores \(f(b_{i_1},\ldots,b_{i_k})\) com \(i_1<\cdots<i_k\).

Comprovação.

  1. Se \(\sigma\) é a composição de \(m\) transposições, então a permutação \(v_{\sigma(1)},\ldots,v_{\sigma(k)}\) de vetores pode ser obtida da configuração original \(v_1,\ldots,v_k\) aplicando as \(k\) transposições, cada uma depois a outra. Cada transposição multiplica o valor de \(f\) por \(-1\), logo depois de aplicar \(m\) transposições, o valor original \(f(v_1,\ldots,v_k)\) será multiplicado por \((-1)^m=(-1)^\sigma\).

  2. Já demonstramos que \(f\) está determinado pelos valores \(f(b_{i_1},\ldots,b_{i_k})\) com \(i_j\in\{1,\ldots,n\}\). Note que se \(i_j=i_l\) com \(j\neq l\), então \(f(b_{i_1},\ldots,b_{i_k})=0\). Logo pode-se dizer que \(f\) está determinado pelos valores \(f(b_{i_1},\ldots,b_{i_k})\) onde os \(i_j\) são distintos. Existe uma única permutação \(\sigma\) de \(\{1,\ldots,k\}\) tal que \(i_{\sigma(1)}< i_{\sigma(2)}< \cdots <i_{\sigma(k)}\). Pelo item 1., temos que \[ (-1)^\sigma f(b_{i_1},\ldots,b_{i_k})=f(b_{i_{\sigma(1)}},\ldots,b_{i_{\sigma(k)}}) \]

Exercício 58.2 Determine a dimensão de \(S^k(V,W)\) e \(A^k(V,W)\) onde \(\dim V=m\) e \(\dim W=n\). Demonstre em particular que \[ \dim A^k(V)=\binom mk. \]

Corolário 58.2 Seja \(V\) um espaço vetorial sobre \(\F\) de dimensão \(n\) com base \(\{b_1,\ldots,b_n\}\). Assuma que \(\alpha\in\F\). Então existe uma única forma \(n\)-linear \(f:V^n\to \F\) tal que \(f(b_1,\ldots,b_n)=\alpha\). Consequentemente \(\dim A^n(V)=1\).

Corolário 58.3 Existe uma única forma \(n\)-linear \(f:(\F^n)^n\to \F\) tal que \(f(e_1,\ldots,e_n)=1\). Se \(a_i=\sum_j a_{i,j} b_j\in V\), então \[ f(a_1,\ldots,a_n)=\sum_{\sigma} (-1)^\sigma a_{1,\sigma(1)}\cdots a_{n,\sigma(n)} \] onde a soma está tomada sobre o conjunto das permutações do conjunto \(\{1,\ldots,n\}\). Em outras palávras, \[ f(a_1,\ldots,a_n)=\det A \] onde \(A\) é a matriz com linhas \(a_1,\ldots,a_n\).

58.4 O pullback e o determinante de operadores

Vamos definir o conceito de determinante para operadores \(V\to V\) de espaços de dimensão finita independentemente das suas matrizes.

Definição 58.3 Sejam \(U\) e \(V\) espaços vetoriai, seja \(f:U\to V\) uma aplicação linear, e assuma que \(k\geq 1\) fixado. Seja \(T\in L^k(V)\). Defina \(f^*T\in L^k(U)\) como \[ f^*T\in L^k(U): (u_1,\ldots,u_k)\mapsto T(f(u_1),\ldots,f(u_k)). \] É fácil verificar que quando \(T\) é uma forma \(k\)-linear, então \(f^*T\) também é uma forma \(k\)-linear. Assim, obtemos uma aplicação \[ f^*:L^k(V)\to L^k(U). \tag{58.1}\] Esta aplicação chama-se o pullback de \(f\).

Lema 58.3 Se \(T\) é uma forma \(k\)-linear alternada, então \(f^*T\) é também uma forma \(k\)-linear alternada. Portanto a restrição de \(f^*\) definida na equação Equação 58.1 resulta em uma aplicação linear \[ f^*_A:A^k(V)\to A^k(U) \] para todo \(k\).

Comprovação. Exercício.

Assuma agora que \(f:V\to V\) onde \(V\) é espaço de dimensão \(n\) (finita). Pelo Corolário 58.2, \(A^n(V)\) é um espaço de dimensão \(1\) e ele pode ser identificado com o corpo \(\F\). Além disso, se \(f:V\to V\), então o pullback \[ f^*_A:A^n(V)\to A^n(V) \] pode ser visto como uma aplicação linear \(\F\to \F\). As aplicações lineares \(\F\to \F\) são dadas por multiplicação escalar com algum elemento de \(\F\). Portanto \(f_A^*\) também pode ser visto como multiplicação por um escalar \(\delta\in\F\) que depende apenas de \(f\).

Definição 58.4 O número \(\delta\) no parágrafo anterior depende apenas da transformação \(f:V\to V\) e chama-se o determinante de \(f\) e será denotado por \(\det f\).

Exercício 58.3 Usando a Definição 58.4, demonstre as propriedades comuns do determinante.

  1. Se \(f,g: V\to V\), então \(\det (f\circ g)=\det f\cdot \det g\).
  2. \(\det f\) coincide com o determinante da matriz de \(f\) em uma base de \(V\).
  3. \(\det f=0\) se e somente se \(f\) não é invertível.