93  As aplicações da Teoria de Galois

93.1 Extensões e torres radicais

Definição 93.1 Seja \(\E:\F\) uma extensão de corpos. Dizemos que \(\E\) é uma extensão radical de \(\F\) se \(\E=\F(\alpha)\) com \(\alpha\in\E\) tal que \(\alpha^k\in \F\). Assumindo que \(k\in\N\) é menor tal que \(\beta=\alpha^k\in\F\), escrevemos também que \(\E=\F(\sqrt[k]\beta)\). Assuma que \[ \K_0\subseteq \K_1\subseteq \K_2\subseteq \cdots\subseteq \K_s \] é uma torre de extensões. Dizemos que ela é uma torre radical se cada extensão \(\K_{i+1}:\K_{i}\) é extensão radical.

Exemplo 93.1 As extensões \(\Q(\sqrt[3]2):\Q\) e \(\Q(\xi):\Q\), onde \(\xi=\exp(2\pi i/3)\) são extensões radicais. A torre \[ \Q\subset \Q(\xi)\subset\Q(\xi,\sqrt[3]2) \] é uma torre radical.

Definição 93.2 Seja \(f(x)\in\F[x]\). Dizemos que \(f(x)\) é resolúvel por radicais se existe uma torre radical \[ \F=\K_0\subseteq \K_1\subseteq \K_2\subseteq \cdots\subseteq \K_s \] tal que \(\K_s\) contém um corpo de decomposição de \(f(x)\). Ou seja \[ f(x)=\alpha(x-\alpha_1)\cdots(x-\alpha_m)\quad\mbox{com}\quad \alpha,\alpha_i\in \K_s. \]

Exemplo 93.2 Seja \(f(x)=ax^2+bx+c\in\Q[x]\) com \(a\neq 0\). Temos que \(f(x)\) é resolúvel por radicais. De fato, se \(\Delta=b^2-4ac\) é o discriminante de \(f(x)\), então temos que \(\Q(\sqrt \Delta)\) é corpo de decomposição de \(f(x)\).

Exemplo 93.3 Seja \(a\in \Z\). O polinômio \(f(x)=x^n-a\) é resolúvel por radicais. De fato, seja \(\xi=\exp(2\pi i/n)\) e \[ \Q\subseteq \Q(\xi_n)\subseteq \Q(\xi_n,\sqrt[n]a) \] é uma torre radical e o último termo é corpo de decomposição de \(f(x)\).

93.2 Extensões ciclotômicas

Exercício 93.1 Demonstre que \(\aut{\Z_n}\cong\Z_n^*\). Deduza que se \(G\) é um grupo cíclico de ordem \(k\), então \(\aut G\) é abeliano de ordem \(\varphi(k)\).

Lema 93.1 Assuma que \(\E\) é um corpo de caraterística zero e seja \(\K\) corpo de decomposição do polinômio \(f(x)=x^k-1\in\E[x]\). Então temos que \(\K:\E\) é uma extensão finita de Galois e \(\gal{\K}{\E}\) é abeliano cuja ordem divide \(\varphi(k)\).

Comprovação. Seja \[ R_k=\{\xi\in\K\mid \xi^k=1\}\subseteq \K \] o conjunto de todas as raízes de \(f(x)\). Note que \(R_k\) é fechado para multiplicação, então ele é um grupo. Por Teorema 76.2, \(R_k\) é um grupo cíclico. Seja \(\xi\) um gerador de \(R_k\) tal que \[ R_k=\{\xi^0,\xi^1,\ldots,\xi^{k-1}\} \] O corpo \(\E\) é corpo de decomposição do polinômio \(x^k-1\in\E[x]\) e \(\K:\E\) é uma extensão de Galois finita. Além disso, \(\K=\E(\xi)\) e se \(\sigma\in\gal{\E(\xi)}{\E}\), então \(\sigma\) está determinado por \(\sigma(\xi)\). Além disso, \[ \sigma(\xi^i\xi^j)=\sigma(\xi^i)\sigma(\xi^j) \] e \(\sigma\) induz um elemento de \(\aut {R_k}\). Obtemos um homomorfismo \(\psi:\gal{\K}{\E}\to \aut{R_k}\). Note que \(\ker\psi\) contém os elementos \(\sigma\in\gal{\K}{\E}\) tal que \(\sigma(\xi)=\xi\). Como \(\K=\E(\xi)\) está gerado por \(\xi\) (sobre \(\E\)), temos que \(\psi\) é injetiva. Portanto \(\gal{\K}{\E}\) pode ser visto como um subgrupo de \(\aut{R_k}\) que é abeliano de ordem \(\varphi(k)\) por Exercício 93.1.

Lema 93.2 Assuma que \(\E\) é um corpo de caraterística zero que contem um corpo de decomposição de \(x^k-1\) e seja \(\K=\E(\sqrt[k]\alpha)\) com algum \(\alpha\in \E\). Então temos que \(\K:\E\) é uma extensão finita de Galois com grupo de Galois cíclico.

Comprovação. Temos que \(\K=\E(\beta)\) tal que \(\beta^k=\alpha\in\E\). Temos que \(\beta\) é raiz de \(f(x)=x^k-\alpha\) e as raízes de \(f(x)\) são \(\beta, \xi_k\beta,\ldots,\xi_k^{k-1}\beta\) onde \(\xi_k\in\E\) é uma \(k\)-ésima raiz primitiva da unidade. Como \(\xi_k\in\E\), temos que \(\K\) é um corpo de decomposição de \(f(x)\) sobre \(\E\). Em particular \(\K:\E\) é de Galois. Seja \(\sigma\in\gal\K\E\). Então \(\sigma(\beta)\) é raiz de \(f(x)\) e assim \(\sigma(\beta)=\xi_k^i\beta\) com algum \(i\in\{0,\ldots,k-1\}\). Considere o grupo \[ R_k=\{\xi_k^0,\ldots,\xi_k^{k-1}\}\subseteq \E \] como na demonstração do Lema 93.1 e Defina, \[ \psi:\gal\K\E\to R_k,\quad \psi(\sigma)=\xi_k^i. \] Note que \(\psi\) é um homomorfismo injetivo e \(\gal\E\K\) pode ser visto como um subgrupo de \(R_k\). Como \(R_k\) é cíclico \(\gal\E\K\) é cíclico (Lema 76.1).

93.3 Resolubulidade de polinômios por radicais

Teorema 93.1 Assuma que \(\F\) é um corpo de caraterística zero e que \(f(x)\in\F[x]\) é resolúvel por radicais e seja \(\K\) um corpo de decomposição de \(f(x)\). Então temos que \(\gal\F\K\) é um grupo solúvel

Comprovação. Assuma que \(f(x)\) é resolúvel por radicais. Seja \[ \K_0=\F\subset \K_1\subset \K_2\subset\cdots\subset \K_s \] uma torre radical tal que \(\K_s\) contém um corpo de decomposição \(\K\) de \(f(x)\). Assuma que \(\K_{i}=\K_{i-1}(\sqrt[k_i]{a_i})\) para todo \(i\in\{1,\ldots,s\}\). Vamos refazer a torre radical para uma nova torre \[ \E_0=\F\subset \E_1\subset \E_2\subset\cdots\subset \E_r \] tal que

  1. \(\E_r\) contém \(\K\);
  2. a extensão \(\E_r:\F\) é finita de de Galois;
  3. cada passo \(\E_{i+1}:\E_i\) é uma extensão radical;
  4. cada passo \(\E_{i+1}:\E_i\) é finito de Galois com \(\gal{\E_{i+1}}{\E_i}\) abeliano.

Para isso, assuma que \(\K_{i}=\K_{i-1}(b_i)\) onde \(b_i^{k_i}=a_i\) e ponha \(k=k_1\cdots k_s\). Seja \(\E\) o corpo de decomposição do polinômio \[ h(x)=(x^k-1)m^\F_{b_1}(x)\cdots m^\F_{b_s}(x). \] A extensão \(\F:\E\) é de Galois finita. Seja \(G\) o grupo de Galois \(\gal\F\E\). Note que \(G\) é um grupo finito e assuma que \(G=\{1,g_2,\ldots,g_m\}\). Seja \(\xi\) uma raiz \(k\)-ésima primitiva da unidade e considere a seguinte sequência de elementos de \(\E\): \[ \xi,b_1,\ldots,b_s,g_2(b_1),\ldots,g_2(b_s),\ldots,g_m(b_1),\ldots,g_m(b_s). \]
Seja \[ \E_0=\F\subseteq \E_1\subseteq \E_2\subseteq \cdots\subseteq \E_r \] a torre obtida por estender cada \(\E_i\) pelo seguinte elemento na sequência. Em particular, \(\E_1=\F(\xi)\). Afirmamos que esta torre satisfaz as afirmações 1.-4.

  1. Note que \(\K_s=\F(b_1,\ldots,b_s)\subseteq \E_r\), então esta afirmação está certa.
  2. Afirmamos que \(\E=\E_r\). Note que \(\E\) é gerado (sobre \(\F\)) pelas raízes de \(h(x)\) que são as raízes dos fatores individuais de \(h(x)\). As raízes de \((x^k-1)\) são as potências de \(\xi\). Note que \(b_i\) é uma raíz de \(m^\F_{b_i}(x)\). Se \(g\in G\), então \(g(b_i)\) também é raiz de \(m^\F_{b_i}(x)\). Isso mostra que \(\E_r\subseteq \E\). Além disso, o Lema 91.4 implica que se \(\gamma\in\E\) é raiz de \(m_{\beta_i}^\F(x)\), então existe \(g\in\gal\E\F\) tal que \(g(\beta_i)=\gamma\). Ou seja, as raízes de \(m^\F_{b_i}(x)\) são precisamente os elementos \(b_i,g_2(b_i),\ldots,g_m(b_i)\). Em outras palavras, os elementos na sequência são precisamente as raízes de \(h(x)\) e \(\E_r\) está gerado por extes elementos. Em particular \(\E\subseteq \E_r\) e \(\E_r=\E\).
  3. Note que \(\E_1=\E_0(\xi)\) e \(\E_{i+1}=\E_i(g(b_j))\) com algum \(g\in G\) e \(b_j\in \E\). Como \[ b_j^{k_j}\in \K_{j-1}=\F(b_1,\ldots,b_{j-1}), \] temos que \[ g(b_j)^{k_j}=g(b_j^{k_j})\in g(\K_{j-1})=\F(g(b_1),\ldots,g(b_{j-1}))\subseteq \E_i. \]
  4. O passo \(\E_1:\E_0=\F(\xi):\F\) é finito de Galois com grupo de Galois abeliano por Lema 93.1. Os demais passos são finitos de Galois por Lema 93.2.

Provaremos agora que \(\gal\F\K\) solúvel. Seja \(G=\gal\F\E\) como em cima. A torre de extensões \[ \F=\E_0\subseteq \E_1\subseteq \E_2\subseteq \cdots\subseteq \E_r=\E \] corresponde a uma cadeia de subgrupos \[ G=G_0\geq G_1\geq G_2\geq \cdots\geq G_r=1 \] onde \(G_i=\gal{\E}{\E_i}\). Afirmamos que \(G\) é solúvel. De fato, como cada extensão \(\E_{i+1}:\E_i\) é Galois, temos que \(G_{i+1}\unlhd G_i\) e \[ G_i/G_{i+1}=\gal\E{\E_{i}}/\gal\E{\E_{i+1}}\cong\gal{\E_{i+1}}{\E_i}. \] Mas \(\gal{\E_{i+1}}{\E_i}\) é abeliano por afirmação 4. Portanto, temos que \(G\) é grupo solúvel por Definição 80.2. Ora, \(\K\subseteq \E\) e \[ \gal\K\F\cong\gal\E\F/\gal\E\K \] e obtemos que \(\gal{\K}\F\) é um grupo solúvel.

93.4 O Teorema de Abel-Ruffini

Teorema 93.2 Se \(n\geq 5\), então existe \(f(x)\in\Q[x]\) de grau \(n\) tal que \(f(x)\) não é resolúvel por radicais.

Comprovação. É suficiente provar que existe um polinômio de grau \(n\) (para todo \(n\geq 5\)) tal que \(\gal\E\Q\) não é solúvel onde \(\E\) é o corpo de decomposição de \(f(x)\).

Seja \(f(x)\in\Q[x]\) um polinômio irredutível de grau \(5\) com precisamente três raízes reais e seja \(G\) o grupo de Galois do seu corpo de decomposição sobre \(\Q\). Temos por Teorema 91.1 que \(G\) age transitivamente nos seus \(5\) raízes distintas, então \(5\mid |G|\) (Corolário 79.1). Portanto, \(G\) possui um elemento \(a\) de ordem \(5\) (Corolário 82.2). Além disso, as duas raízes não reais são conjugadas complexas e assim a conjugação complexa é um elemento \(b\) de \(G\) e \(b\) induz uma transposição destas duas raízes. Ora, \(G\) contem um elemento de ordem \(5\), que deve ser um ciclo de comprimento \(5\), e uma transposição. Mas estes elementos geram \(S_5\), e \(G=S_5\). Como \(S_5\) não é solúvel, temos que \(f(x)\) não é resolúvel por radicais.

Para o caso geral de \(n\geq 5\), toma um polinômio divisível por \(f(x)\).

Exemplo 93.4 O polinômio \(x^5-20x+5\) satisfaz as propriedades exigidas na demonstração do Teorema 93.2.

93.5 Demais aplicações da Teoria de galois