Definição 27.1 Assuma que \(R\) é um conjunto com pelo menos dois elementos equipado por duas operações \(+\) (adição) e \(\cdot\) (multiplicação) que satisfazem as seguintes propriedades para todo \(a,b,c\in R\):
- \(a+(b+c)=(a+b)+c\) (associatividade da adição);
- \(a+b=b+a\) (comutatividade da adição);
- existe um elemento \(0\in R\) (elemento neutro aditivo) tal que \(a+0=a\);
- para todo elemento \(a\in R\) existe um elemento denotado por \(-a\) (simétrico de \(a\)) tal que \(a+(-a)=0\);
- \(a\cdot(b\cdot c)=(a\cdot b)\cdot c\) (associatividade da multiplicação);
- \(a\cdot b=b\cdot a\) (comutatividade da multiplicação);
- existe um elemento \(1\in R\) (elemento neutro multiplicativo) tal que \(1\cdot a=a\);
- \(a\cdot (b+c)=a\cdot b+a\cdot c\) (distributividade).
O conjunto \(R\) com as operações \(+\) e \(\cdot\) é chamado anel. As vezes escrevemos que a estrutura \((R,+,\cdot)\) é um anel.
Na definição anterior, o fato que \(+\) e \(\cdot\) são operações sobre \(R\) quer dizer que \(R\) é fechado para estas operações. Ou seja, se \(a,b\in R\), então \(a+b,a\cdot b\in R\). O produto \(a\cdot b\) é também denotado simplesmente por \(ab\) quando não há perigo de confusão.
Na verdade, o nosso conceito de anéis é conhecido na literatura como anel comutativo com identidade, mas, como nós não vamos estudar outros tipos de anéis, optamos por simplificar a terminologia a chamar estes objetos simplesmente como anéis. Mas o leitor deve ficar ciente que em muitos livros a definição de anel não exige que a multiplicação seja comutativa e as vezes os livros não assumem a existência do elemento neutro para a multiplicação.
Exemplo 27.1 Os exemplos mais comuns de anéis são os conjuntos \(\Z\), \(\Q\), \(\R\), \(\C\) com as suas respetivas operações \(+\) e \(\cdot\). Pelo que estudamos na segunda parte da disciplina, podemos afirmar que \((\Z_n,+,\cdot)\) também é um anel para todo \(n\geq 2\). Um exemplo interessante de anéis é o anel de inteiros gaussianos: \[
\Z[i]=\{a+bi\mid a,b\in\Z\}.
\] É fácil verificar que \(\Z[i]\) é um anel com as operações de \(+\) e \(\cdot\). Um exemplo similar é o anel \[
\Z[\sqrt 2]=\{a+b\sqrt 2\mid a,b\in\Z\}.
\] O leitor pode verificar que \(\Z[\sqrt 2]\) é um anel.
Exemplos importantes de anéis aparecem na área de cálculo e análise. Considere por exemplo o conjunto \[
C([0,1])=\{f:[0,1]\to \R\mid \mbox{$f$ é contínua}\}.
\] Tomando \(f,g\in C([0,1])\), a soma \(f+g\) e o produto \(f\cdot g\) podem ser definidos como \[\begin{align*}
f+g&:[0,1]\to \R,\ (f+g)(x)=f(x)+g(x)\mbox{ para todo } x\in[0,1];\\
f\cdot g&:[0,1]\to \R,\ (f\cdot g)(x)=f(x)\cdot g(x)\mbox{ para todo } x\in[0,1].
\end{align*}\] É fácil verificar que \((C([0,1]),+,\cdot)\) é um anel.
Vamos terminar a lista dos exemplos com alguns exemplos que não são anéis. Por exemplo, o conjunto de números pares \(\{0,\pm 2,\pm 4,\ldots\}\) com as operações usuais não é anel, pois não possui elemento neutro. O conjunto de matrizes \(2\times 2\) sobre \(\R\) com a soma e produto entre matrizes não é anel (por nossa definição), pois a multiplicação não é comutativa. O conjunto \(\N_0\) dos inteiros não negativos também não é anel, pois os os elementos positivos não têm simétricos.
Podemos observar que nos exemplo conhecidos, os elementos neutros \(0\) e \(1\) e o simétrico de qualquer \(a\in R\) são únicos. Teoricamente poderia existir algum anel esquisito que possui dois elementos neutros, ou algum elemento com dois simétricos, mas o lema seguinte implica que isso é impossível.
Lema 27.1 Seja \(R\) um anel. Os elementos neutros \(0\) e \(1\) e, para \(a\in R\), o simétrico de \(a\) são únicos. Além disso, \(0\cdot a =0\) para todo \(a\in R\)
Comprovação. Assuma por exemplo que \(0_1\) e \(0_2\) são elementos neutros para adição em um anel \(R\). Usando os axiomas do anel, obtemos que \[
0_1=0_1+0_2=0_2+0_1=0_2.
\] Então \(0_1=0_2\) e o elemento neutro para a soma é único. Pode-se usar o mesmo argumento para provar que o elemento neutro para a multiplicação também é único. Assuma que \(a\in R\) e sejam \(b,c\in R\) tais que \(b\) e \(c\) são simétricos de \(a\). De novo, usamos os axiomas para obter que \[
b=b+0=b+(a+c)=(b+a)+c=(a+b)+c=0+c=c.
\] Ou seja \(b=c\), e o simétrico de \(a\) é único.
Finalmente, assuma que \(a\in R\). Então \[
0\cdot a=(0+0)\cdot a=0\cdot a+0\cdot a.
\] Somando o negativo \(-(0\cdot a)\) de \(0\cdot a\) aos dois lados da equação anterior, obtemos que \(0=0\cdot a\) como foi afirmado.
Se \(R\) é um anel e \(a,b\in R\) então escrevemos \(a-b\) para denotar \(a+(-b)\).
Definição 27.2 Seja \(R\) um anel e seja \(a\in R\). O elemento \(a\) é dito invertível (ou unidade) se existir \(b\in R\) tal que \(ab=1\). O elemento \(a\) é dito divisor de zero se \(a\neq 0\) e existe \(b\in R\setminus\{0\}\) tal que \(ab=0\)
Exemplo 27.2 Por exemplo, os elementos invertíveis em \(\Z\) e em \(\Z[\sqrt 2]\) são \(1\) e \(-1\). Em \(\Z[i]\), os invertíveis são \(1,-1,i,-i\). Em \(\Z_{10}\) os invertíveis são \(\overline 1,\overline 3,\overline 7,\overline 9\). Em \(\Q\), \(\R\), \(\C\) e em \(\Z_p\), para \(p\) primo, todos os elementos não nulos são invertíveis.
Os anéis \(\Z\), \(\Z[i]\), \(\Z[\sqrt 2]\), \(\Q\), \(\R\), \(\C\) e \(\Z_p\), para \(p\) primo, não possuem divisores de zero. Os divisores de zero em \(\Z_{10}\) são \(\overline 2\), \(\overline 4\), \(\overline 5\), \(\overline 6\), \(\overline 8\).
Note que segue do fato que \(0\cdot a =0\) para todo \(a\in R\) que \(0\) nunca é invertível.
Usando o mesmo argumento que o simétrico de um elemento é único, pode-se provar que o inverso de um elemento \(a\in R\) invertível é único. Assim, o inverso de \(a\in R\) (quando existir) é escrito como \(a^{-1}\).
Exercício 27.1 Seja \(a\in R\) um elemento invertível de um anel \(R\). Mostre que \(a\) não é divisor de zero
Lema 27.2 (A lei do cancelamento) Seja \(R\) um anel, \(a,b,c\in R\) tal que \(a\neq 0\), \(a\) não é divisor de zero e \[
ab=ac.
\] Então \(b=c\)
Comprovação. Assuma que \(ab=ac\); ou seja \[
0=ab-ac=a(b-c).
\] Como \(a\) não é zero e não é divisor de zero, segue que \(b-c=0\); ou seja \(b=c\)
Exemplo 27.3 Sejam \(a=\overline 4\), \(b=\overline 1\), \(c=\overline 3\) elementos em \(\Z_8\). Então temos que \[
a\cdot b=\overline 4=\overline{12}=a\cdot c
\] mas \(b\neq c\). Então a condição no lema anterior que \(a\) não pode ser um divisor de zero é necessária
Definição 27.3 Um anel \(R\) chama-se domínio de integridade ou simplesmente domínio se \(R\) não possui divisores de zero. O anel \(R\) chama-se corpo se todo elemento \(a\in R\setminus\{0\}\) é invertivel
Se \(R\) é um domínio de integridade e \(a,b\in R\) tais que \(ab=0\), então \(a=0\) ou \(b=0\).
Exemplo 27.4 Entre os exemplos acima, \(\Z\), \(\Z[i]\), \(\Z[\sqrt 2]\) são domínios, mas eles não são corpos. Os anéis \(\Q\), \(\R\), \(\C\) e \(\Z_p\), para \(p\) primo, são corpos. Se \(n\) é um número composto, então \(\Z_n\) não é corpo nem é domínio
Lema 27.3 Se \(R\) é corpo, ele é domínio
Comprovação. Assuma que \(R\) é um corpo e \(a\in R\setminus\{0\}\). O fato que \(R\) é corpo implica que \(a\) é invertível e obtemos do exercício acima que \(a\) não é divisor de zero