43  O núcleo e a imagem

Definição 43.1 Sejam \(V,W\) espaços vetoriais e \(T:V\to W\) uma transformação linear.

O núcleo (ou kernel) de \(T\) é \[\tn{Ker}(T) := \{\ul{v}\in V\,|\, T(\ul{v}) = \ul{0}\}\subseteq V.\]

A imagem de \(T\) é \[\tn{Im}(T) := \{T(\ul{v})\,|\, \ul{v}\in V\} \subseteq W.\]

O núcleo de \(T\) é subespaço de \(V\) e a imagem de \(T\) é subespaço de \(W\).

Comprovação. Primeiramente \(\tn{Ker}(T)\neq \varnothing\), pois \(T(\ul{0}) = \ul{0}\). Os vetores \(\ul{u}, \ul{v}\in \tn{Ker}(T)\) implica que \(T(\ul{u}) = T(\ul{v}) = \ul{0}\). Agora \[T(\ul{u}+\ul{v}) = T(\ul{u}) + T(\ul{v}) = \ul{0} + \ul{0} = \ul{0},\] logo \(\ul{u}+\ul{v}\in \tn{Ker}(T)\) também. Se \(\ul{v}\in \tn{Ker}(T), \,\lambda\in \R\), então \[T(\lambda\ul{v}) = \lambda T(\ul{v}) = \lambda\cdot\ul{0} = \ul{0}\] então \(\lambda\ul{v}\in \tn{Ker}(T)\) também. Segue que \(\tn{Ker}(T)\) é subespaço de \(V\).

\(\tn{Im}(T)\neq\varnothing\), pois \(\ul{0} = T(\ul{0}) \in \tn{Im(T)}\). Elementos de \(\tn{Im}(T)\) têm a forma \(T(\ul{v})\) com \(\ul{v}\in V\). Dados \(T(\ul{u}), T(\ul{v})\in \tn{Im}(T)\), temos \[T(\ul{u}) + T(\ul{v}) = T(\ul{u} + \ul{v}) \in \tn{Im}(T).\] Dados \(T(\ul{v})\in \tn{Im}(T)\) e \(\lambda\in \R\), \[\lambda T(\ul{v}) = T(\lambda\ul{v}) \in \tn{Im}(T),\] então \(\tn{Im(T)}\) é subespaço de \(W\). ◻

Exemplo 43.1  

  1. Considere \(T:V\to W\).

    • \(\tn{Im}(T) = W\) se, e somente se, \(T\) é sobrejetiva (Definição 8.3).

    • \(\tn{Ker}(T) = V\) se, e somente se, \(T\) é a transformação nula.

  2. Seja \(f:V\to \R\) um funcional. Se \(f\) não é nulo, então \(f\) é sobrejetivo, pois a imagem de \(f\) é um subespaço de \(\R\) diferente de \(\{\ul{0}\}\) e os únicos subespaços de \(\R\) são \(\{\ul{0}\}\) e \(\R\), logo \(\tn{Im}(f) = \R\).

  3. Considere a TL \(T_A:\R^4\to \R^3\), onde \[A = \begin{pmatrix} 1 & 2 & 0 & 3 \\ 0 & 0 & 1 & 2 \\ 0 & 0 & 0 & 0 \end{pmatrix}.\] Vamos calcular \(\tn{Im}(T_A)\) e \(\tn{Ker}(T_A)\). Temos \[T_A\begin{pmatrix} w \\ x \\ y \\ z \end{pmatrix} = \begin{pmatrix} 1 & 2 & 0 & 3 \\ 0 & 0 & 1 & 2 \\ 0 & 0 & 0 & 0 \end{pmatrix}\begin{pmatrix} w \\ x \\ y \\ z \end{pmatrix} = \begin{pmatrix} w + 2x + 3z \\ y+2z \\ 0 \end{pmatrix}.\] Todo vetor da imagem de \(T_A\) tem a forma \(\begin{pmatrix}a \\ b \\ 0\end{pmatrix}\), então \[\tn{Im}(T_A) \subseteq X = \left\{\left.\begin{pmatrix}a \\ b \\ 0\end{pmatrix}\right| a,b\in \R \right\}.\] Mas \[T_A\begin{pmatrix} 1 \\ 0 \\ 0 \\ 0 \end{pmatrix} = \begin{pmatrix} 1 \\ 0 \\ 0 \end{pmatrix}\quad,\quad T_A\begin{pmatrix} 0 \\ 0 \\ 1 \\ 0 \end{pmatrix} = \begin{pmatrix} 0 \\ 1 \\ 0 \end{pmatrix}\] então \(\tn{Im}(T_A)\) é um subespaço de \(X\) que contém uma base de \(X\). Ou seja, \(\tn{Im}(T_A) = X\).

    Um vetor \(\begin{pmatrix} w \\ x \\ y \\ z \end{pmatrix}\) pertence ao núcleo de \(T_A\) se, e somente se, \(w+2x+3z = 0\) e \(y+2z=0\) (e \(0=0\)). Isto é, \(\tn{Ker}(T_A)\) é o conjunto solução do sistema homogêneo \[\begin{pmatrix} 1 & 2 & 0 & 3 \\ 0 & 0 & 1 & 2 \\ 0 & 0 & 0 & 0 \end{pmatrix}\begin{pmatrix} w \\ x \\ y \\ z \end{pmatrix} = \ul{0}.\] As variáveis \(\boxed{x = \alpha}\) e \(\boxed{z = \beta}\) são livres (pois correspondem às colunas sem pivôs). Temos \[y + 2z = 0 \implies \boxed{y = -2\beta}.\] \[w + 2x + 3z = 0 \implies \boxed{w = -2\alpha - 3\beta}.\] Logo \[\tn{Ker}(T_A) = \left\{\left. \begin{pmatrix}-2\alpha-3\beta \\ \alpha \\ -2\beta \\ \beta \end{pmatrix}\right|\,\alpha, \beta\in \R\right\}.\]

Exercício 43.1 Dada uma matriz \(A\), mostre que o núcleo de \(T_A\) é sempre o conjunto solução do sistema homogêneo \[AX = \ul{0}.\]

Observe que no exemplo acima, \[\dim(\tn{Ker}(T_A)) + \dim(\tn{Im}(T_A)) = 2 + 2 = 4 = \dim(\R^4).\] De fato, esta igualdade sempre vale:

Teorema 43.1 Sejam \(V,W\) espaços vetoriais com \(V\) de dimensão finita e seja \(T:V\to W\) uma transformação linear. Então \[\dim(\tn{Ker}(T))+ \dim(\tn{Im}(T)) = \dim(V).\]

Comprovação. Já que \(\tn{Ker}(T)\) é subespaço de \(V\), seja \(\{\ul{n_1}\,,\,\ldots\,,\,\ul{n_a}\}\) uma base de \(\tn{Ker}(T)\), e estende ela para uma base \(\{\ul{n_1}\,,\,\ldots\,,\,\ul{n_a}\,,\,\ul{v_1}\,,\,\ldots\,,\,\ul{v_b}\}\) de \(V\). Afirmo que \(B=\{T(\ul{v_1})\,,\,\ldots\,,\,T(\ul{v_b})\}\) é uma base de \(\tn{Im}(T)\).

  • \(B\) é sistema gerador: Dado \(T(\ul{v})\in \tn{Im}(T)\), escreva \[\ul{v} = \mu_1\ul{n_1} + \cdots + \mu_a\ul{n_a} + \lambda_1\ul{v_1} + \cdots + \lambda_b\ul{v_b}.\] Temos

    \[\begin{aligned} T(\ul{v}) & = T( \mu_1\ul{n_1} + \cdots + \mu_a\ul{n_a} + \lambda_1\ul{v_1} + \cdots + \lambda_b\ul{v_b}) \\ & = \mu_1T(\ul{n_1}) + \cdots + \mu_aT(\ul{n_a}) + \lambda_1T(\ul{v_1}) + \cdots + \lambda_bT(\ul{v_b}) \\ & = \lambda_1T(\ul{v_1}) + \cdots + \lambda_bT(\ul{v_b})\qquad\qquad (\hbox{pois }T(\ul{n_i}) = 0\,\forall i). \end{aligned}\]

    Logo \(T(\ul{v})\) é uma combinação linear de elementos de \(B.\quad\checkmark\)

  • \(B\) é sistema l.i. Se \(\lambda_1T(\ul{v_1}) + \cdots + \lambda_bT(\ul{v_b}) = \ul{0}\), então \[T(\lambda_1\ul{v_1} + \cdots + \lambda_b\ul{v_b}) = \ul{0},\] logo \(\lambda_1\ul{v_1} + \cdots + \lambda_b\ul{v_b} \in \tn{Ker}(T)\). Já que \(\{\ul{n_1}\,,\,\ldots\,,\,\ul{n_a}\}\) gera \(\tn{Ker}(T)\), temos que \[\lambda_1\ul{v_1} + \cdots + \lambda_b\ul{v_b} = \mu_1\ul{n_1} + \cdots + \mu_a\ul{n_a}\] para alguns \(\mu_i\in \R\). Mas o conjunto \(\{\ul{n_1}\,,\,\ldots\,,\,\ul{n_a}\,,\,\ul{v_1}\,,\,\ldots\,,\,\ul{v_b}\}\) é LI, logo \(\lambda_i = 0\,\forall i\). Mostramos que \(B\) é LI.

Então, \[\dim(\tn{Ker}(T)) + \dim(\tn{Im}(T)) = a + b = \dim(V).\] ◻

Proposição 43.1 A transformação linear \(T:V\to W\) é injetiva (Definição 8.3) se, e somente se, \(\tn{Ker}(T) = \{\ul{0}\}\).

Comprovação. Temos que mostrar duas implicações:

  • \(T(\ul{0}) = \ul{0}\) e \(T\) é injetiva, então mais ninguém pode ir para \(\ul{0}\). Ou seja, \(\tn{Ker}(T) = \{\ul{0}\}\).

  • Suponha que \(T(\ul{u}) = T(\ul{v})\). Então \[T(\ul{u} - \ul{v}) = T(\ul{u}) - T(\ul{v}) = T(\ul{u}) - T(\ul{u}) = \ul{0},\] logo \(\ul{u} - \ul{v}\in \tn{Ker}(T)\). Mas \(\tn{Ker}(T) = \{\ul{0}\}\), então \[\ul{u} - \ul{v} = \ul{0},\] ou seja \(\ul{u} = \ul{v}\), mostrando que \(T\) é injetiva.

 ◻

Se lembre que tratamos dois espaços vetoriais \(V,W\) como sendo basicamente “iguais” quando existe um isomorfismo entre eles. Vamos usar vários fatos obtidos até agora para concluir que, pensando assim, existem “poucos espaços vetoriais” diferentes.

Teorema 43.2 Sejam \(V, W\) espaços vetoriais com dimensão \(n\) e sejam \(B,C\) bases de \(V,W\) respetivamente. Uma bijeção \(f:B\to C\) estende unicamente para um isomorfismo de espaços vetoriais \(T_f:V\to W\). Em particular, \(V\) e \(W\) são isomorfos.

Comprovação. Fazendo a composição da bijeção dada com a inclusão de \(C\) em \(W\) (isto é, a função \(C\to W\) que manda \(\ul{c}\) em \(\ul{c}\)), podemos pensar em \(f\) como função \[f: B \to C \to W.\] Já mostramos que existe uma única transformação linear \(T_f:V\to W\) tal que \(T_f(\ul{b}) = f(\ul{b})\) para cada \(\ul{b}\in B\). Afirmo que \(T_f\) é bijetiva (Definição 8.3). Ela é

  • pois \(\tn{Im}(T_f)\) é um subespaço de \(W\) que contém a base \(C\) de \(W\), então \(\tn{Im}(T_f) = W\).

  • Pelo Teorema Núcleo-Imagem, \(n=\dim W=\dim\,\mbox{Im}(T_f)=\dim V-\dim \ker T_f=n-\dim\ker T_f\). Logo, \(\dim\ker T_f=0\); ou seja, \(\ker T_f=\{\ul 0\}\) e a Proposição anterior implica que \(T_f\) é injetiva.

 ◻

O Teorema anterior é verdadeiro para espaçõs de dimensão infinita, mas neste caso precisa-se considerar os diferentes tipos de infinitos (enumerável, não enumerável, etc). No caso dos espaços de dimensão infinita, o argumento na demonstração que \(\ker T_f=\{\ul 0\}\) não é válido (você tá vendo porque?), mas não é difícil substituí-lo com um argumento direto.

Corolário 43.1 Seja \(V\) um espaço vetorial de dimensão \(n\). Então \(V\) é isomorfo a \(\R^n\).

Comprovação. Segue do Teorema 43.2, desde que os dois têm dimensão \(n\).  Alternativamente, pode observar também que escolhendo uma base \(B\) para \(V\), o mapa \(\ul{v}\mapsto v_B\) é um isomorfismo \(V\to \R^n\)

Exemplo 43.2  

  1. O espaço vetorial \(M_{2,3}(\R)\) é isomorfo a \(\R^6\), pois os dois têm dimensão 6. Um isomorfismo \(M_{2,3}(\R)\to \R^6\) é dado por \[\begin{pmatrix}a & b & c \\ d & e & f \end{pmatrix}\mapsto (a,b,c,d,e,f).\] Qualquer bijeção entre bases daria um isomorfismo. Por exemplo, uma outra bijeção entre as bases canônicas daria o isomorfismo \[\begin{pmatrix}a & b & c \\ d & e & f \end{pmatrix}\mapsto (c , e , f , b , d , a).\] Nem precisamos usar as bases canônicas. Por exemplo, uma outra base de \(\R^6\) é \[\{(1,1,0,0,0,0)\,,\,(0,1,1,0,0,0)\,,\,(0,0,1,1,0,0)\,,\qquad\] \[\qquad(0,0,0,1,1,0)\,,\,(0,0,0,0,1,1)\,,\,(0,0,0,0,0,1)\}\] (confirme!). Um isomorfismo correspondente pode ser \[\begin{pmatrix}a & b & c \\ d & e & f \end{pmatrix}\mapsto (a\,,\,a + b\,,\,b+c\,,\,c+d\,,\,d+e\,,\,e+f).\]