51  O adjunto de uma transformação linear

Nestas próximas aulas, vamos conversando sobre relacionamentos entre conceitos que já temos. Se lembre que ainda deixamos aberta a questão de quais matrizes \(A\) dão produtos internos \(\langle-,-\rangle_A\). Vamos chegar lá ainda.

51.1 Produtos internos e o espaço dual

Se lembre que o espaço dual \(V^*\) do espaço vetorial \(V\) é o espaço vetorial dos funcionais sobre \(V\): \[V^* = \mathcal{L}(V,\R) = \{f:V\to \R\,|\,f\hbox{ uma TL}\}.\]

Caso \(V\) tem dimensão finita, escolha uma base \(B\) de \(V\). Escreva os vetores de \(V\) como vetores de coordenadas com respeito a \(B\), assim tratando \(V\) como \(\R^n\). Sabemos já (da seção “Transformações lineares e matrizes”) que, escrevendo as TLs com respeito a essa base, obtemos um isomorfismo de espaços vetoriais \[\begin{aligned} M_{1,n}(\R) & \to V^* \\ A & \mapsto f_A \end{aligned}\] onde \(f_A:V\to \R\) é a TL dada por \[f_A\begin{pmatrix}v_1 \\ \vdots \\ v_n\end{pmatrix} = \begin{pmatrix}a_1 & \cdots & a_n\end{pmatrix}\begin{pmatrix}v_1 \\ \vdots \\ v_n\end{pmatrix} = \sum_{i=1}^na_iv_i.\]

Em particular, \(\dim(V^*) = n\). Agora, suponha que \(V\) é munido com um produto interno \(\langle-,-\rangle\). Já que ele é bilinear, quando fixamos \(\ul{u}\), a função \[\begin{aligned} f_{\ul{u}}: V & \to\,\,\, \R \\ \ul{v}\, & \mapsto \langle \ul{u},\ul{v}\rangle \end{aligned}\] é uma TL \(V\to \R\). Ou seja, um elemento de \(V^*\).

Teorema 51.1 A função \[\begin{aligned} \rho :V & \to V^* \\ \ul{u} & \mapsto f_{\ul{u}} \end{aligned}\] é um isomorfismo de espaços vetoriais.

Comprovação. Os espaços \(V,V^*\) têm a mesma dimensão, então basta provar que \(\rho\) é injetiva. Mas \(\ul{u}\in \tn{Ker}(\rho)\) implica que \(f_{\ul{u}}\) é a função nula. Ou seja, que \[\langle \ul{u},\ul{v}\rangle = 0\] para todo \(\ul{v}\in V\). Já que o produto é positivo definido, isso acontece se, e somente se, \(\ul{u} = \ul{0}\). ◻

Exemplo 51.1 O teorema diz que dada uma base \(\{\ul{u_1},\ldots,\ul{u_n}\}\) de \(V\), então \[\{f_{\ul{u_1}},\ldots,f_{\ul{u_n}}\} = \{\langle \ul{u_1},-\rangle,\ldots,\langle \ul{u_n},-\rangle\}\] é uma base de \(V^*\).

Pegue a base canônica \(\{(1,0),(0,1)\}\) de \(\R^2\). Vamos calcular as bases correspondentes de \((\R^2)^*\) com respeito a

  • O produto interno normal: Neste caso, \[f_{(1,0)}(x,y) = \langle(1,0),(x,y)\rangle = x\] e \[f_{(0,1)}(x,y) = \langle(0,1),(x,y)\rangle = y\] são as projeções sobre a primeira coordenada e a segunda coordenada, respetivamente.

  • O produto interno vindo da matriz \(A = \begin{pmatrix}2 & -1 \\ -1 & 2\end{pmatrix}\): Neste caso, \[f_{(1,0)}(x,y) = \langle (1,0),(x,y) \rangle_A = \begin{pmatrix} 1 & 0\end{pmatrix}\begin{pmatrix} 2 & -1 \\ -1 & 2\end{pmatrix}\begin{pmatrix} x \\ y\end{pmatrix} = 2x-y\] e \[f_{(0,1)}(x,y) = \langle (0,1),(x,y) \rangle_A = \begin{pmatrix} 0 & 1\end{pmatrix}\begin{pmatrix} 2 & -1 \\ -1 & 2\end{pmatrix}\begin{pmatrix} x \\ y\end{pmatrix} = -x+2y\] dá uma base diferente.

O teorema diz que qualquer funcional \(f:V\to \R\) tem a forma \(f = f_{\ul{u}}\) para um único vetor \(\ul{u}\) de \(V\). Diremos que \(\ul{u}\) representa o funcional \(f\).

51.2 A adjunta de uma transformação linear

Matrizes correspondem a transformações lineares, e propriedades das matrizes correspondem a certas propriedades das TLs correspondentes. Por exemplo, uma matriz quadrada \(A\) é não singular (isto é, \(\tn{Det}(A)\neq 0\)) se, e somente se, a TL correspondente é um isomorfismo. A propriedade de uma matriz ser simétrica corresponde a o que com respeito à TL correspondente?

Teorema 51.2 Sejam \(V,W\) espaços vetoriais de dimensão finita com produtos internos e \(S\) de \(V\) em \(W\) uma transformação linear. Existe uma única TL \(T:W\to V\) com a propriedade que \[\langle S(\ul{v}),\ul{w}\rangle = \langle \ul{v},T(\ul{w})\rangle\] para todo \(\ul{v}\in V, \ul{w}\in W\). A transformação \(T\) se chama a adjunta ou transposta da TL \(S\).

Observação: Os dois produtos internos neste teorema são diferentes! O primeiro é o produto interno em \(W\), enquanto o segundo é o produto interno em \(V\).

Comprovação. \[\begin{aligned} f_{\ul{w}}: V & \to \R \\ \ul{v}\, & \mapsto \langle S(\ul{v}),\ul{w}\rangle \end{aligned}\] Essa função é, de fato, uma TL, sendo a composição de TLs \[V\xrightarrow{S}W\xrightarrow{\langle -,\ul{w}\rangle}\R.\] Mas já decidimos, na última seção, que qualquer funcional \(V\to \R\) pode ser representado por um único vetor de \(V\), então seja \(\ul{u}\in V\) o vetor que representa \(f_{\ul{w}}\). Seja \(T:W\to V\) a função que manda \(\ul{w}\) para \(\ul{u}\). Temos que confirmar umas coisas:

  • Que \(\langle S(\ul{v}),\ul{w}\rangle = \langle \ul{v},T(\ul{w})\rangle\,\forall \ul{v}\in V, \forall \ul{w}\in W\). Mas essa igualdade está, de fato, dizendo exatamente que \(T(\ul{w})\) representa o funcional \(f_{\ul{w}}\) para todo \(\ul{w}\in W\).

  • \(T\) é TL. Dados \(\ul{w_1}, \ul{w_2}\in W\) e \(\ul{v}\in V\),

    \[\begin{aligned} \langle \ul{v}, T(\ul{w_1})+T(\ul{w_2})\rangle & = \langle \ul{v}, T(\ul{w_1})\rangle + \langle \ul{v},T(\ul{w_2})\rangle \\ & = \langle S(\ul{v}), \ul{w_1}\rangle + \langle S(\ul{v}),\ul{w_2}\rangle \\ & = \langle S(\ul{v}), \ul{w_1}+\ul{w_2}\rangle \\ & = \langle \ul{v}, T(\ul{w_1}+\ul{w_2})\rangle. \end{aligned}\]

    Segue que ambos \(T(\ul{w_1})+T(\ul{w_2})\) e \(T(\ul{w_1}+\ul{w_2})\) representam o mesmo funcional, então pelo teorema anterior de novo, eles são iguais.

    Exercício: confirme que \(T(\lambda \ul{w}) = \lambda T(\ul{w})\).

 ◻

O nome “transposta” dá uma dica sobre qual será a matriz de \(T\). A seguinte proposição também mostra mais uma utilidade de bases ortonormais:

Proposição 51.1 Sejam \(B,C\) bases ortonormais de \(V,W\) respetivamente e suponha que \(S:V\to W\) é dada pela matriz \[[S]_C^B = A.\] Então a adjunta \(T:W\to V\) de \(S\) é dada pela matriz transposta \[[T]_B^C = A^{t}.\]

Comprovação. Seja \(\ul{v}\) um elemento de \(V\). Já que temos uma base ortonormal \(C\) de \(W\), segue da propaganda para tais bases que o elemento \[S(\ul{v}) = \sum_{\ul{c_i}\in C}\langle S(\ul{v}),\ul{c_i}\rangle \ul{c_i}.\] Em particular, para cada elemento \(\ul{b_k}\) de \(B\), \[S(\ul{b_k}) = \sum_{\ul{c_i}\in C}\langle S(\ul{b_k}),\ul{c_i}\rangle \ul{c_i}.\] Pela construção da matriz de uma TL (tendo colunas os vetores de coordenadas dos \(S(\ul{b_j})\)), a matriz \(X\) de \(S\) com respeito a essas bases é \[[S]_C^B = (\langle S(\ul{b_j}),\ul{c_i}\rangle)_{ij}.\] Para ver isso diretamente: \[X\ul{b_k} = (\langle S(\ul{b_j}),\ul{c_i}\rangle)_{ij}\begin{pmatrix}0 \\ \vdots \\ 1 \\ \vdots \\ 0\end{pmatrix} = \begin{pmatrix}\langle S(b_k),\ul{c_1}\rangle \\ \langle S(b_k),\ul{c_2}\rangle \\ \vdots \\ \langle S(b_k),\ul{c_n}\rangle\end{pmatrix} = \sum_{i=1}^n \langle S(b_k),\ul{c_i}\rangle \ul{c_i} = S(\ul{b_k}). \quad\checkmark\] O mesmo argumento mostra que a \((j,i)\)-ésima entrada da matriz de \(T:W\to V\) com respeito a essas bases é \[\begin{aligned} ([T]_B^C)_{ji} & = \langle T(\ul{c_i}),\ul{b_j}\rangle \\ & = \langle\ul{b_j}, T(\ul{c_i})\rangle\qquad(\hbox{produto interno simétrico}) \\ & = \langle S(\ul{b_j}), \ul{c_i}\rangle\qquad(T\hbox{ adjunta a }S) \\ & = ([S]_C^B)_{ij}. \end{aligned}\] Ou seja, \([T]_B^C = ([S]_C^B)^t\). ◻

Exemplo 51.2 Considere \(\R^2\) com a base canônica e produto interno \(\langle-,-\rangle\) normal. Observe que com respeito ao produto dado, esta base é ortonormal. Seja \(S:\R^2\to \R^2\) a TL dada por \[S(1,0) = (0,1)\,,\, S(0,1) = (1,1).\] Então, \(S\) é dada pela matriz \[X = \begin{pmatrix} 0 & 1 \\ 1 & 1\end{pmatrix}.\] A proposição diz que a matriz da adjunta \(T : \R^2\to \R^2\) é \[X^t = \begin{pmatrix} 0 & 1 \\ 1 & 1\end{pmatrix}^t = X.\] Por exemplo, a proposição diz que dados \(\ul{u} = (1,2), \ul{v} = (3,4)\), temos \[\left\langle \begin{pmatrix} 0 & 1 \\ 1 & 1\end{pmatrix}\begin{pmatrix} 1 \\ 2\end{pmatrix}\,,\, \begin{pmatrix} 3 \\ 4\end{pmatrix}\right\rangle = \left\langle \begin{pmatrix} 1 \\ 2\end{pmatrix}\,,\, \begin{pmatrix} 0 & 1 \\ 1 & 1\end{pmatrix}\begin{pmatrix} 3 \\ 4\end{pmatrix}\right\rangle.\] O lado esquerdo é \[\langle(2,3), (3,4)\rangle = (2,3)\cdot (3,4) = 6 + 12 = 18.\] O lado direito é \[\langle(1,2), (4,7)\rangle = (1,2)\cdot (4,7) = 4 + 14 = 18.\quad\checkmark\]

51.3 Operadores autoadjuntos

Definição 51.1 Sejam \(V\) um espaço vetorial de dimensão finita com produto interno e \(S:V\to V\) um operador (isto é, endomorfismo) de \(V\). Dizemos que \(S\) é auto-adjunto ou simétrico se o seu operador adjunto \(T = S\).

Ou seja, \(S\) é auto-adjunto se, e somente se, \[\langle S(\ul{u}),\ul{v}\rangle = \langle \ul{u},S(\ul{v})\rangle\quad\forall \ul{u},\ul{v}\in V.\]

Conclusão fácil das contas até agora:

Proposição 51.2 Seja \(S:V\to V\) um operador e seja \(B\) uma base ortonormal de \(V\). Então \(S\) é auto-adjunto se, e somente se, a matriz \[[S]_B^B\] é simétrica.

Comprovação. Seja \(A\) a matriz de \(S\) com respeito a \(B\) (ou seja, \([S]_B^B = A\)). Já que \(B\) é ortonormal, a matriz do adjunto \(T\) de \(S\) é \(A^t\). Logo, o operador é autoadjunto se, e somente se, \[A^t = [T]_B^B = [S]_B^B = A.\] ◻

Exemplo 51.3 A TL do último exemplo com matriz \(\begin{pmatrix} 0 & 1 \\ 1 & 1\end{pmatrix}\) é auto-adjunto, já que a matriz com respeito à base canônica de \(\R^2\) é simétrica.

Exemplo 51.4 Considere \(\R^2\) com produto escalar normal e considere a base \(B = \{(1,1)\,,\,(0,1)\}\). A TL \(S\) dada pela matriz \[[S]_B^B = \begin{pmatrix} 4 & 3 \\ 1 & -1\end{pmatrix}\] é auto-adjunto? Para saber, o jeito mais fácil é encontrar a matriz de \(S\) com respeito a uma base ortonormal (qualquer!) de \(\R^2\). Vamos escolher uma base ortonormal esquisita só para ver, então pegue \[C = \left\{(1/\sqrt{2}\,,\,1/\sqrt{2})\,,\, (-1/\sqrt{2}\,,\,1/\sqrt{2})\right\}.\] Temos \[[I]_B^C = \begin{pmatrix} 1/\sqrt{2} & -1/\sqrt{2} \\ 0 & 2/\sqrt{2} \end{pmatrix}\,,\quad [I]_C^B = \begin{pmatrix} 2/\sqrt{2} & 1/\sqrt{2} \\ 0 & 1/\sqrt{2} \end{pmatrix}.\] Logo com respeito à base ortonormal \(C\), a matriz de \(S\) é \[\begin{aligned} {}[S]_C^C & = [I]_C^B\cdot[S]_B^B\cdot[I]_B^C \\ & = \begin{pmatrix} 2/\sqrt{2} & 1/\sqrt{2} \\ 0 & 1/\sqrt{2} \end{pmatrix}\begin{pmatrix} 4 & 3 \\ 1 & -1 \end{pmatrix}\begin{pmatrix} 1/\sqrt{2} & -1/\sqrt{2} \\ 0 & 2/\sqrt{2} \end{pmatrix} \\ & = \begin{pmatrix} 9/2 & 1/2 \\ 1/2 & -3/2 \end{pmatrix}\qquad \longleftarrow\hbox{ Matriz simétrica!} \end{aligned}\] Logo, o operador \(S\) é auto-adjunto.

Exercício: Calcule a matriz de \(S\) com respeito à base canônica.