Antes de estudar esta matéria revise o Teorema de Fatoração para polinômios (Teorema 34.2). Nesta página \(V\) é um \(\F\)-espaço de dimensão finita a \(f\in\mbox{End}(V)\).
Começamos por três exemplos motivadores.
Exemplo 63.1 Seja \(f:\F^5\to \F^5\) um endomorfismo e \(B\) é base de \(\F^5\) tal que \[
[f]_B^B=\begin{pmatrix}
2 & 0 & 0 & 0 & 0\\ 0 & 2 & 0 & 0& 0\\ 0 & 0 & 2 & 0& 0\\ 0 & 0 & 0 & 3& 0\\ 0 & 0 & 0 & 0& 3\\
\end{pmatrix}.
\] Ou seja, \(f\) é diagonalizável com autovalores \(2\) e \(3\). O polinômio minimal de \(f\) é \(m_f(t)=(t-2)(t-3)=t^2-5t+6\) enquanto o polinômio caraterístico é \(\mbox{pcar}_f(t)=(t-2)^3(t-3)^2\). O espaço \(\F^5\) decompõe-se \[
\F^5=\langle b_1,b_2,b_3\rangle\oplus\langle b_4,b_5\rangle=V_2\oplus V_3=\ker(f-2\mbox{id})\oplus\ker(f-3\mbox{id}).
\] Ou seja, a fatoração do polinômio minimal \(m_f(t)\) em produto de irredutúveis está refletida em uma fatoração de \(V\) em uma soma direta de autoespaços.
Exemplo 63.2 A fatoração do domínio do endomorfismo como no exemplo anterior não é sempre possível. Considere por exemplo \(f:\F^5\to \F^5\) um endomorfismo e \(B\) é base de \(\F^5\) tal que \[
[f]_B^B=\begin{pmatrix}
2 & 1 & 0 & 0 & 0 \\ 0 & 2 & 0 & 0& 0\\ 0 & 0 & 2 & 0& 0\\ 0 & 0 & 0 & 3& 1\\ 0 & 0 & 0 & 0& 3\\
\end{pmatrix}.
\] O polinômio caraterístico de \(f\) é o mesmo que no exemplo anterior: \(\mbox{pcar}_f(t)=(t-2)^3(t-3)^2\). Logo, operador \(f\) tem dois autovalores \(2\) e \(3\), mas os autoespaços são \(V_2=\langle b_1,b_3\rangle\) e \(V_3=\langle b_4\rangle\). Em particular \(\F^5\neq V_2\oplus V_3\). Por outro lado, note que as matrizes de \(f-2\mbox{id}\) e \(f-3\mbox{id}\) são \[
\begin{pmatrix}
0 & 1 & 0 & 0 & 0 \\ 0 & 0 & 0 & 0& 0\\ 0 & 0 & 0 & 0& 0\\ 0 & 0 & 0 & 1& 1\\ 0 & 0 & 0 & 0& 1\\
\end{pmatrix}\quad e\quad
\begin{pmatrix}
-1 & 1 & 0 & 0 & 0 \\ 0 & -1 & 0 & 0& 0\\ 0 & 0 & -1 & 0& 0\\ 0 & 0 & 0 & 0& 1\\ 0 & 0 & 0 & 0& 0\\
\end{pmatrix}.
\] Logo o polinômio minimal de \(f\) é \(m_f(t)=(t-2)^2(t-3)^2\). Além disso, \[
W_2=\langle b_1,b_2,b_3\rangle =\ker[(f-2\mbox{id})^2]\mbox{ e }W_3=\langle b_4,b_5\rangle =\ker[(f-3\mbox{id})^2]
\] e \[
\F^5=W_2\oplus W_3.
\] Em outras palavras, \(\F^5\) não se decompões como soma direta dos autoespaços, mas existe uma decomposição de \(\F^5\) reletindo a decomposição de \(m_f(t)\). Os espaços \(W_2\) e \(W_3\) são chamados de autoespaços generalizados.
Exemplo 63.3 Seja \(f:\R^4\to \R^4\) um endomorfismo com matriz \[
X=[f]_B^B=\begin{pmatrix} 0 & 0 & 0 & -1\\ 1 & 0 & 0 & 0 \\ 0 & 1 & 0 & -1 \\ 0 & 0 & 1 & 0\end{pmatrix}
\] em uma base \(B=\{b_1,b_2,b_3,b_4\}\). Note que a matriz \(X\) é a matriz companheira do polinômio \(t^4+t^2+1\). Por um exercício nas listas, \[
\mbox{pcar}_f(t)=m_f(t)=t^4+t^2+1=(t^2+t+1)(t^2-t+1).
\] Temos ainda que os fatores no lado direito da linha anterior são irredutíveis e \(\mbox{pcar}_f(t)\) não possui raiz em \(\R\). Portanto, \(f\) não tem autovalores e nem tem autoespaços generalizados não triviais.
Por outro lando, observe que substituindo \(f\) nos dois fatores de \(\mbox{pcar}_f(t)\), obtemos os endomorfismos com as seguintes matrizes: \[
\begin{pmatrix}1 & 0 & -1 & -1 \\ 1 & 1 & 0 & -1 \\ 1 & 1 & 0 & -1\\ 0 & 1 & 1 & 0\end{pmatrix}\quad\mbox{e}\quad
\begin{pmatrix}1 & 0 & -1 & 1 \\ -1 & 1 & 0 & -1 \\ 1 & -1 & 0 & 1\\ 0 & 1 & -1 & 0\end{pmatrix}.
\] Calculando as forma escalonadas destas matrizes, os núcleos destes endomorfismos são \[
\ker (f^2+f+1)=\langle b_1+b_4,b_2-b_3+b_4\rangle
\] e \[
\ker (f^2-f+1)=\langle b_1-b_4,b_2+b_3+b_4\rangle.
\] Obtemos neste caso a decomposição \[
\R^4=\ker(f^2+f+1)\oplus \ker(f^2-f+1).
\]
Exercício 63.1 Seja \(p:V\to V\) uma projeção. Então \(p\) comuta com \(f\) (ou seja \(pf=fp\)) se e somente se \(\ker p\) e \(\mbox{Im}(p)\) são invariantes por \(f\).
Teorema 63.1 (O Teorema da Decomposisão Primária) Assuma que \[
m_f(t)=q_1(t)^{\alpha_1}\cdots q_k(t)^{\alpha_k}
\] com \(\alpha_i\geq 1\) e os \(q_is\) são polinômios irredutúveis distintos em \(\F[x]\). Ponha \(W_i=\ker (q_i^{\alpha_i}(f))\). Então as seguintes são verdadeiras:
- \(V=W_1\oplus\cdots\oplus W_k\);
- cada \(W_i\) é \(f\)-invariante;
- o polinômio mínimo de \(f|_{W_i}\) é \(q_i^{\alpha_i}(t)\).
Comprovação. Seja \[
r_i=m_f(t)/q_i^{\alpha_i}(t)=q_1(t)^{\alpha_1}\cdots q_{i-1}(t)^{\alpha_{i-1}}q_{i+1}(t)^{\alpha_{i+1}}\cdots q_k(t)^{\alpha_k}.
\] Os polinômios \(r_1,\ldots,r_k\) são primos entre si, e existem \(h_1(t),\ldots,h_k(t)\in\F[x]\) tais que \[
h_1(t)r_1(t)+\cdots+h_k(t)r_k(t)=1;
\] ou seja \[
h_1(f)r_1(f)+\cdots+h_k(f)r_k(f)=\mbox{id}_V;
\] Afirmamos que a composição de duas parcelas na soma anterior é o endomorfismo zero. De fato, note que se \(i\neq j\), então \(m_f(t)\mid r_i(t)r_j(t)\) e \[
h_i(f)r_i(f)h_j(f)r_j(f)=h_i(f)h_j(f)r_i(f)r_j(f)=[(h_ih_j)(f)][(r_ir_j)(f)]=0.
\] Aqui usamos que \(r_i(f)\) \(h_j(f)\) comutam pois eles são membros do anel comutativo \(\F[f]\).
Ora usamos o Teorema que provamos na página Projeções para concluir que cada \(h_i(f)r_i(f)\) é uma projeção e \[
V=\mbox{Im}(h_1(f)r_1(f))\oplus\cdots\oplus \mbox{Im}(h_k(f)r_k(f)).
\]
Próximo afirmamos que \(\mbox{Im}(h_i(f)r_i(f))=\ker(q_i(f)^{\alpha_i})\) para todo \(i\). Se \(v\in \mbox{Im}(h_i(f)r_i(f))\), então \(v=(h_i(f)r_i(f))(w)\) e \[
q_i^{\alpha_i}(f)(v)=q_i^{\alpha_i}(f)h_i(f)r_i(f)(w)=h_i(f)q_i^{\alpha_i}(f)r_i(f)(w)=0.
\] Logo, \(\mbox{Im}(h_i(f)r_i(f))\leq \ker(q_i(f)^{\alpha_i})\). Agora, assuma que \(v\in \ker(q_i(f)^{\alpha_i})\) e note que \(q_i^{\alpha_i}(t)\mid r_j(t)\) para todo \(j\neq i\) e portanto \(h_j(f)r_j(f)(v)=0\). Ora, \[\begin{align*}
v&=\mbox{id}_V(v)=(h_1(f)r_1(f)+\cdots+h_i(f)r_i(f)+\cdots+h_k(f)r_k(f))(v)\\&=h_i(f)r_i(f)(v)\in \mbox{Im}(h_i(f)r_i(f)).
\end{align*}\] Isso monstra que a decomposição no item 1. está válida. O fato que \(W=\ker(q_i^{\alpha_i}(f))=\mbox{Im}(h_i(f)r_i(f))\) é \(f\)-invariante, segue do fato que \(f\) comuta com a projeção \(h_i(f)r_i(f)\) e do exercício em cima.
Finalmente, provamos a afirmação sobre o polinômio mínimo de \(f|_{W_i}\). Seja \(m_i(t)\) este polinômio mínimo. Como \(W_i=\ker(q_i^{\alpha_i}(f))\), temos que \(m_i(t)\mid q_i^{\alpha_i}(t)\). Ou seja, \(m_i(t)=q_i^{\beta_i}(t)\) com algum \(\beta_i\in\{1,\ldots,\alpha_i\}\) e isso vale para todo \(i\). Se \(v\in V\), escreva \(v=v_1+\cdots+v_k\) com \(v_i\in W_i\) e \[\begin{align*}
q_1^{\beta_1}(f)\cdots q_k^{\beta_k}(f)(v)&=q_1^{\beta_1}(f)\cdots q_k^{\beta_k}(f)(v_1+\cdots+v_k)\\&=
q_1^{\beta_1}(f)\cdots q_k^{\beta_k}(f)(v_1)+\cdots+q_1^{\beta_1}(f)\cdots q_k^{\beta_k}(f)(v_k)\\&=0.
\end{align*}\] Obtemos que \(m_f(t)=q_1^{\alpha_1}\cdots q_k^{\alpha_k}\) divide \(q_1^{\beta_1}\cdots q_k^{\beta_k}\). Pelo Teorema da Fatoração para Polinômios, obtemos que \(\alpha_i\leq \beta_i\) para todo \(i\) e \(\alpha_i=\beta_i\) segue para todo \(i\). Logo \(m_i(t)=q_i^{\alpha_i}\).
O Teorema espectral é o caso particilar \(\F=\C\) do Teorema da Decomposição Primária. Neste caso \[
m_f(t)=(t-\lambda_1)^{\alpha_1}\cdots (t-\lambda_k)^{\alpha_k}
\] com \(\lambda_1,\ldots,\lambda_k\in \C\) distintos e \(\alpha_i\geq 1\).
Teorema 63.2 (O Teorema Espectral) Assuma que \(\F=\C\) e \(f:V\to V\) é como acima. Neste caso, \[
m_f(t)=(t-\lambda_1)^{\alpha_1}\cdots (t-\lambda_k)^{\alpha_k}
\] com \(\lambda_i\in\C\) distintos e \(\alpha_i\geq 1\). Ponha \(W_i=\ker (f-\lambda_i\mbox{id}_V)^{\alpha_i}\). Então as seguintes são verdadeiras:
- \(V=W_1\oplus\cdots\oplus W_k\);
- cada \(W_i\) é \(f\)-invariante;
- o polinômio mínimo de \(f|_{W_i}\) é \((t-\lambda_i)^{\alpha_i}\).