80  Operadores positivos e decomposição em valores singulares

Nesta página, \(V\) é um \(\C\)-espaço de dimensão finita \(n\) com produto interno \(\left<-,-\right>\).

80.1 Operadores positivos

Lema 80.1 Assuma que \(f\in\mbox{End}(V)\) é tal que \[ \left<f(v),v\right>=0\quad\mbox{para todo}\quad v\in V. \] Mostre que \(f=0\).

Comprovação. Conta simples mostra que \[\begin{align*} \left<f(v),w\right>&=\frac 14(\left<f(v+w),v+w\right>-\left<f(v-w),v-w\right>)+\\ &+\frac i4(\left<f(v+iw),v+iw\right>-\left<f(v-iw),v-iw\right>)=0 \end{align*}\] vale para todo \(v,w\in V\). Ora, toma \(w=f(v)\) para obter que \(\|f(v)\|^2=\left<f(v),f(v)\right>=0\); ou seja \(f(v)=0\).

Note que o Lema 80.1 não vale para \(\R\)-espaços. Por exemplo, a rotação \(f\) por 90 graus em \(\R^2\) tem a propriedade que \(f(v)\perp v\); ou seja \(\left<f(v),v\right>=0\) para todo \(v\in \R^2\), mas \(f\neq 0\).

Definição 80.1 Um operador \(f\in\mbox{End}(V)\) é dito positivo se \(\left<f(v),v\right>\in \R\) e \(\left<f(v),v\right>\geq 0\) para todo \(v\in V\). \(f\) é dito positivo definido se \(\left<f(v),v\right>> 0\) para todo \(v\in V\).

Lema 80.2 Um operador positivo é autoadjunto e portanto é ortogonalmente diagonalizável. Além disso, os seus autovalores são não negativos. Vice versa, um operador autoadjunto é positivo se e somente se seus autvalores são não negativos.

Comprovação. Assums que \(f\) é positivo. Então \(\left<f(v),v\right>\in\R\) e assim \(\left<f(v),v\right>=\left<v,f(v)\right>\). Mas também, pela definição do adjunto \(f^*\), \[ \left<f(v),v\right>=\left<v,f^*(v)\right>. \] Logo, \(\left<v,f(v)\right>=\left<v,f^*(v)\right>\) para todo \(v\in V\); ou seja, \(\left<v,(f-f^*)(v)\right>=0\) para todo \(v\in V\). Ora, Lema 80.1 implica que \(f-f^*=0\), portanto \(f=f^*\). O fato que \(f\) é diagonalizável segue por Teorema 77.1. Se \(\lambda\) é autovalor de \(f\) com autovetor \(v\), então \[ 0\leq \left<f(v),v\right>=\lambda\left<v,v\right>=\lambda\|v\|^2, \] logo \(\lambda \geq 0\).

Assuma agora que \(f\) é autoadjunto e seja \(b_1,\ldots,b_n\) uma base ortonormal composta por autovetores de \(f\) que correspondem aos autovalores \(\lambda_1,\ldots,\lambda_n\geq 0\), respetivamente. Seja \(v=\sum_{i=1}^n\alpha_i b_i\). Então \[ \left<f(v),v\right>=\left<f\left(\sum_{i=1}^n\alpha_i b_i\right),\sum_{i=1}^n\alpha_i b_i\right>= \left<\sum_{i=1}^n\alpha_i \lambda_i b_i,\sum_{i=1}^n\alpha_i b_i\right> \sum_{i=1}^n \lambda_i|\alpha_i|^2\geq 0. \] Portanto \(f\) é positivo.

80.2 A raiz quadrada de um operador positivo

Seja \(f\in\mbox{End}(V)\) positivo. Pelo Lema 80.2, temos que \(f\) é ortogonalmente diagonalizável e existe uma base ortonormal \(b_1,\ldots,b_n\) composta por autovetores de \(f\) que correspondem aos autovalores \(\lambda_1,\ldots,\lambda_n\), respetivamente, tais que \(\lambda_i\geq 0\) para todo \(i\). Considere o operador, \(g:b_i\mapsto \sqrt{\lambda_i} b_i\) para todo \(i\). Note que

  1. \(g\) é autoadjunto;
  2. os autovalores de \(g\) são \(\sqrt{\lambda_1},\ldots,\sqrt{\lambda_n}\);
  3. \(g\) é positivo por Lema 80.2;
  4. \(g^2=f\);
  5. se \(v\) é autovetor de \(f\) com autovalor \(\lambda_i\) então \(v\) é autovetor de \(g\) com autovalor \(\sqrt{\lambda_i}\).

Definição 80.2 O operador \(g\) é dito raiz quadrada de \(f\) e escrevemos \(g=\sqrt f\).

Lema 80.3 Assuma que \(f\in\mbox{End}(V)\) é positivo. Então existe único \(g\in\mbox{End}(V)\) positivo tal que \(g^2=f\).

Comprovação. Seja \(g\) como no argumento no parágrafo antes do lema. A existência segue da construção de \(g\). Para a unicidade, suponha que \(h\) também é positivo e \(h^2 = f\). Então \(h\) é autoadjunto e existe uma base ortonormal \(c_1,\ldots,c_n\) tal que \(h(c_i) = \mu_i c_i\) para certos \(\mu_i \geq 0\). Como \(h^2=f\), temos que \(f(c_i)=\mu_i^2 c_i\), ou seja, cada \(c_i\) é autovetor para \(f\) com autovalor \(\mu_i^2\). Mas, pela observação 5. em cima, os autovetores de \(f\) são autovetores de \(g\), e assim \(g(c_i)=\mu_ic_i\) e isso implica que \(g(c_i)=h(c_i)\) para todo \(i\) e \(g=h\).

Lema 80.4 Seja \(f\in \mbox{End}(V)\) qualquer. Então \(f^* f\) é um operador autoadjunto e positivo e existe \(\sqrt{f^*f}\).

Comprovação. Precisa verificar que \[ \left<f^*f(v),v\right>\geq 0\quad\mbox{para todo}\quad v\in V. \] Mas, como \((f^*)^*=f\), \[ \left<f^*f(v),v\right>=\left<f(v),(f^*)^*v\right>=\left<f(v),f(v)\right>=\|f(v)\|^2\geq 0. \]

80.3 A decomposição polar

Proposição 80.1 (Decomposição polar) Assuma que \(f\in\mbox{End}(V)\) um operador qualquer. Então \(f=u p\) onde \(u\) é unitário e \(p\) é positivo.

Comprovação. Considere o operador \(p = \sqrt{f^* f}\), que é positivo por Lema 80.4. Se \(p\) é invertível, defina \(u = f p^{-1}\). Então: \[ u^* u = (f p^{-1})^* (f p^{-1}) = (p^{-1})^* f^* f p^{-1} = p^{-1} f^* f p^{-1} = p^{-1} p^2 p^{-1} = \mbox{id}_V, \] ou seja, \(u\) é unitário. Assim, \(f = u p\).

Se \(p\) não é invertível, seja \(b_1,\ldots,b_n\) uma base ortonormal composta por autovetores de \(p\) com autovalores \(\lambda_1,\ldots,\lambda_n\geq 0\). Assuma ainda que \(\lambda_1,\ldots,\lambda_k>0\) e \(\lambda_{k+1}=\cdots=\lambda_n=0\). Com \(i\in\{1,\ldots,n\}\), ponha \(c_i=f(b_i)\). Afirmamos que \(c_1,\ldots,c_n\) é um sistema ortogonal com \(\|c_i\|=\lambda_i\). De fato, \[ \left<c_i,c_j\right>=\left<f(b_i),f(b_j)\right>=\left<b_i,f^*f(b_j)\right>=\left<b_i,p^2(b_j)\right>=\lambda_j^2\left<b_i,b_j\right> \] e a afirmação segue do fato que os \(b_i\) formam base ortonormal. Para \(i\in\{1,\ldots,k\}\), seja \(d_i=\lambda_i^{-1}c_i\) e note que \(d_1,\ldots,d_k\) é um sistema ortonormal. Usando ortogonalização de Gram-Schmidt, estenda este sistema para sistema ortonormal \(d_1,\ldots,d_n\). Com o sistema estendido, temos que \(c_i=\lambda_i d_i\) vale para todo \(i\in\{1,\ldots,n\}\). Seja \(u:V\to V\) a aplicação que manda \(b_i\mapsto d_i\). Como os \(b_i\) e os \(d_i\) formam sistema ortonormal, temos que \(u\) é operador unitário. Além disso, vale para todo \(i\) que \[ up(b_i)=u(\lambda_i b_i)=\lambda_i u(b_i)=\lambda_i d_i \] e \[ f(b_i)=c_i=\lambda_i d_i. \] Portanto \(f\) \(up\) são iguais sobre uma base que implica que \(f=up\).

80.4 Valores singulares

Teorema 80.1 (Decomposição em valores singulares) Seja \(A\in M_{n\times n}(\C)\). Então \(A\) pode ser escrita como \(A=UDV\) onde \(U,V\) são matrizes unitárias e \(D\) é matriz diagonal com números reais não negativos na diagonal principal. Além disso, as entradas na diagonal de \(D\) são unicamente determinadas por \(A\).

Comprovação. Assuma que \(A\) e a matriz do operador \(f\) na base canônica. Pela Proposição 80.1, temos que \(f=z p\) onde \(z\) é unitária e \(p\) é positiva. Assuma que \(P\) e \(Z\) são as matrizes de \(p\) e \(z\) na base canônica. Então \(A=ZP\) e \(Z\) é matriz unitária e \(P\) é hermitiana. Em particular, \(P\) é ortogonalmente diagonalizável e existe alguma matriz unitária \(W\) tal que \(W^*PW=D\) diagonal. Como \(P\) é positivo e \(D\) contém os autovalores de \(P\) na diagonal, as entradas de \(P\) na diagonal principal são reais a não negativos. Ora, \[ W^*AW=W^*ZPW=W^*ZWW^*PW=W^*ZWD \] e obtemos que \[ A=ZWDW^*. \] Tomando \(D=D\), \(U=ZW\) e \(V=W^*\), obtemos a decomposição no enunciado.

Assuma que as entradas de \(D\) na diagonal principal são \(\delta_1,\ldots,\delta_n\). Tem-se que \[ A^*A=V^*D^*U^*UDV=V^*D^2V, \] que implica que os autovalores de \(A^*A\) são \(A^*A\) são \(\delta_1^2,\ldots,\delta_n^2\). Como \(\delta_i\geq 0\) para todo \(i\), temos que estes autovalores são unicamente determinados por \(A^*A\) e também por \(A\).

Definição 80.3 As entradas na diagonal principal da matriz \(D\) são chamadas dos valores singulares da matriz \(A\).