75  Isometrias de espaços com formas

75.1 Isometrias de espaços com formas

Definição 75.1 Sejam \((V,B)\) e \((W,C)\) \(\F\)-espaços vetoriais com formas sesquilineares reflexivas. Um morfismo entre \((V,B)\) e \((W,C)\) é uma transformação linear \(f:V\to W\) tal que \[C(f(v),f(w))=B(v,w)\quad\mbox{para todo}\quad v,w\in V. \] Um morfismo bijetivo \(f:V\to W\) é chamado isometria. Dois espaços \((V,B)\) e \((W,C)\) são isométricos se existir uma isometria \(f:V\to W\).

Lema 75.1 Assuma que \(f\) é um morfismo entre \((V,B)\) e \((W,C)\). Então \(\ker f\leq \mbox{Rad}(B)\). Em particular, se \(B\) é não degenerada, então \(f\) é injetiva.

Comprovação. Seja \(v\in\ker f\) e \(w\in V\) arbitrário. Então \(B(v,w)=C(f(v),f(w))=0\) e \(v\in \mbox{Rad}(B)\). Se \(B\) for não degenerada, então \(\mbox{Rad}(B)=0\) e \(\ker f=0\) e, consequentemente, \(f\) é injetiva.

Corolário 75.1 Seja \(V\) um espaço vetorial de dimensão finita com forma sesquilinear reflexiva e não degenerada \(B\). Se \(f:V\to V\) é um morfismo, então \(f\) é uma isometria de \(V\). Em particular \(f\) é um automorfismo de \(V\).

75.2 Bases ortogonais e ortonormais

Definição 75.2 Seja \(V\) um espaço com forma sesquilinear reflexiva \(B\). Um sistema de vetores \(X\) de \(V\) é dito ortogonal se \(B(b_i,b_j)=0\) (ou seja, \(b_i\perp b_j\)) para todo \(b_i,b_j\in X\) distintos. Quando a forma é \(\sigma\)-hermitiana, o sistema \(X\) é dito ortonormal se ele é ortogonal e \(Q(b_i)=B(b_i,b_i)=1\) para todo \(b_i\in X\).

Exercício 75.1 Seja \(B\) uma forma \(\sigma\)-sesquilinear reflexiva sobre um espaço \(V\).

  1. Mostre que um sistema \(X\) ortogonal com \(Q(b,b)\neq 0\) para todo \(b\in X\) é l.i.
  2. Seja \(X\) uma base ortogonal com \(Q(b,b)\neq 0\) para todo \(b\in X\). Mostre para \(v\in V\) que \[ v=\sum_{b\in X} \frac{B(v,b)}{B(b,b)}b \] (mostre que a soma na linha anterior é finita mesmo que \(X\) seja infinita).

Teorema 75.1 Seja \(V\) um \(\F\)-espaço de dimensão finita sobre um corpo de caraterística diferente de \(2\) e \(B\) uma forma \(\sigma\)-Hermitiana (incluindo simétrica). Então \(V\) possui uma base ortogonal.

Comprovação. Seja \(V_0=\mbox{Rad}(V)\) e escreva \(V=W\perp V_0\) com um complemento \(W\) de \(V_0\) qualquer. A restrição de \(B\) para \(W\) é não degenerada. Se \(X_W\) é uma base ortogonal de \(W\) e \(X_0\) é uma base qualquer de \(V_0\), então \(X_W\cup X_0\) é base ortogonal de \(V\). Então precisamos achar base ortogonal no espaço \(W\) e assumimos sem perder a generalidade que \(B\) é não degenerada em \(V\).

Avançamos por indução em \(\dim V\). Se \(\dim V=1\), então qualquer vetor \(v\in V\setminus\{0\}\) é uma base ortogonal. Assuma que espaços de dimensão \(n-1\) com formas não degeneradas têm bases ortogonais e assuma que \(\dim V=n\). Seja \(Q\) a forma quadrática associada com \(B\); ou seja \(Q(v)=B(v,v)\). Afirmamos que existe \(v\in V\) tal que \(Q(v)\neq 0\). Caso contrário, escolha \(u,v\in V\) tal que \(B(u,v)=1\) (eles existem) e obtenha pelo item 4. do Lema 74.4 que \[ 0=B(u,v)+B(v,u)=B(u,v)+B(u,v)^\sigma=1+1^\sigma. \] Ou seja, \(1^\sigma=-1\). Mas se \(\mbox{car}(\F)\neq 2\), isso é impossível, pois \(1^\sigma=1\) para todo automorfismo de \(\F\). Logo existe vetor \(b_1\in V\) tal que \(Q(b_1)=B(b_1,b_1)\neq 0\). Seja \(U=\langle b_1\rangle\) e considere \(U^\perp\). Temos que \(\dim U^\perp=\dim V-1\) (\(B\) é não degenerada). Além disso, \(U\cap U^\perp=0\), pois se \(w\in U\cap U^\perp\), então \(u=\alpha b_1\) com algum \(\alpha\in\F\) e \(0=B(\alpha b_1,b_1)=\alpha Q(b_1)\) que implica que \(\alpha=0\) e portanto \(w=\alpha b_1=0\). Isso implica que \(V=U\oplus U^\perp\). A restrição de \(B\) para \(U^\perp\) é não degenerada, pois se \(w\) está no radical da restrição de \(B\) para \(U^\perp\), então \(w\in U^\perp\) e \(w\in (U^\perp)^\perp=U\) e assim \(w=0\). Pela hipótese da indução \(U^\perp\) possui uma base \(\{b_2,\ldots,b_n\}\) ortogonal. Ora \(\{b_1,\ldots,b_n\}\) é base ortogonal de \(V\).

75.3 O Teorema de inêrcia de Sylvester

Exercício 75.2 Seja \(\sigma\in\mbox{Aut}(\R)\). Mostre que

  1. se \(x\) é positivo, então \(x^\sigma\) é positivo;
  2. \(\sigma\) é não decrescente;
  3. \(\sigma\) é contínua;
  4. sabendo que \(\Q\subseteq \mbox{Fix}(\sigma)\), deduza que \(\sigma=\mbox{id}_\R\).

[Dica: consulte a discussão na página de StackExchange.]

Exercício 75.3 Seja \(\sigma\in\mbox{Aut}(\C)\) tal que \(\sigma\) é contínuo. Mostre que \(\sigma=\mbox{id}_\C\) ou \(\sigma\) é o conjugado complexo. [Dica: considere as raízes do polinômio \(t^2+1\).] Tem uma boa discussão dos automorfismos de \(\C\) que não são contínuos no StackExchange.

Corolário 75.2 Assuma que \(V\) e \(B\) são como no Teorema 75.1 e assuma que \(B\) é não-degenerada.

  1. Se \(\F=\C\) e \(\sigma=\mbox{id}_\C\), então \(V\) possui uma base ortonornal.
  2. Se \(\F=\R\) ou \(\F=\C\) e \(\sigma\) é o conjugado complexo, então \(V\) possui uma base ortogonal \(\{b_1,\ldots,b_n\}\) tal que \(B(b_i,b_i)=\pm 1\). Além disso, o número \(p\) de \(b_i\) com \(B(b_i,b_i)=-1\) é independente a base escolhida.

Comprovação. Assuma que \(\{b_1,\ldots,b_n\}\) é base ortogonal de \(V\) e seja \(\alpha_i=B(b_i,b_i)\neq 0\).

  1. Se \(\F=\C\) e \(B\) é simétrica, então podemos substituir \(b_i\) por \(b_i'=(\alpha_i)^{1/2} b_i\) e \(\{b_1',\ldots,b_n'\}\) é base ortonormal.

  2. Ponha \(b_i'=|\alpha_i|^{1/2}b_i\). Ora \(\{b_1',\ldots,b_n'\}\) é base com \(B(b_i',b_i')=\pm 1\).

    Assuma agora que \(X=\{b_1,\ldots,b_k,b_{k+1},\ldots,b_n\}\) é base de \(V\) tal que \(Q(b_i)=-1\) para \(i\in\{1,\ldots,k\}\) e \(Q(b_i)=1\) para os demais \(i\). Seja \(Y=\{c_1,\ldots,c_m,c_{m+1},\ldots,c_n\}\) uma outra base com \(Q(c_j)=-1\) para \(j\in\{1,\ldots,m\}\) e \(Q(c_j)=1\) para os demais \(j\). Assuma que \(k\geq m\). Afirmamos que \[ b_1,\ldots,b_k,c_{m+1},\ldots,c_n \] é um sistema L.I. Assuma que \[ \alpha_1b_1+\cdots +\alpha_kb_k+\alpha_{m+1}c_{m+1}+\cdots+\alpha_nc_n=0. \] Logo \[ \alpha_1b_1+\cdots+ \alpha_kb_k=-\alpha_{m+1}c_{m+1}-\cdots-\alpha_nc_n. \] Aplicando \(Q\) nos vetores \(v\) e \(w\) nos dois lados da equação acima, obtemos que \(Q(v) \leq 0\), enquanto \(Q(w) \geq 0\). Portanto \(Q(v)=Q(w)=0\) e \(\alpha_i=0\) para todo \(i\). Isso implica que \(k+n-m\leq n\); ou seja, \(k\leq m\); ou seja \(k=m\).

Definição 75.3 O par \((p,n-p)\) no resultado anterior é chamado assinatura de \(B\). A assinatura está bem definida nas situações do item 2. no corolário anterior.

Definição 75.4 O espaço \(\R^{p+q}\) (também denotado por \(\R^{p,q}\)) é o espaço vetorial \(\R^{p+q}\) com forma simétrica \(B\) com matriz diagonal com \(-1,\ldots,-1,1,\ldots,1\) na diagonal (\(-1\) repetendo \(p\) vezes e \(1\) repetendo \(q\) vezes). O espaço \(\C^{p+q}\) está definido na mesma forma, mas tomamos uma forma \(\sigma\)-hermitiana com \(\sigma\) sendo o conjugado complexo.

Exemplo 75.1 Note que \(\R^{0+q}\) é o espaço \(\R^q\) com o produto interno usual em \(\R^q\). O espaço \(\R^{1+3}\) é o espaço de Minkowski usado na relatividade especial. Descrita na seguinte forma.

O espaço de Minkowski \(\R^{1+3}\) é o espaço \(\R^4\) com a forma bilinear simétrica \(B\) definida por \[ B(v,w) = v_tw_t - v_xw_x - v_yw_y - v_zw_z, \] onde \(v = (v_t, v_x, v_y, v_z)\) e \(w = (w_t, w_x, w_y, w_z)\). A forma quadrática assiciada com esta forma é \[ Q(v)=v_t^2-v_x^2-v_y^2-v_z^2. \] Nota que a matriz desta forma na base canômica é \[ \begin{pmatrix} 1 & 0 & 0 & 0 \\ 0 & -1 & 0 & 0 \\ 0 & 0 & -1 & 0 \\ 0 & 0 & 0 & -1 \end{pmatrix}. \]

Geometricamente, o espaço de Minkowski é usado na relatividade especial para descrever o espaço-tempo. Os vetores podem ser classificados em três tipos:

  1. Vetores tipo-tempo: Vetores \(v\) tais que \(Q(v) > 0\). Esses vetores representam eventos que podem ser acessos por um observador que encontra-se na origem (por exemplo, a trajetória de uma partícula com massa positiva).
  2. Vetores tipo-luz: Vetores \(v\) tais que \(Q(v) = 0\). Esses vetores representam trajetórias de partículas sem massa, como fótons.
  3. Vetores tipo-espaço: Vetores \(v\) tais que \(Q(v) < 0\). Esses vetores representam eventos que não podem ser acessos por um observador na origem.

Por exemplo, considere os vetores \(v = (1, 0, 0, 0)\) e \(w = (0, 1, 0, 0)\). Temos: \[ B(v,v) = 1, \quad B(w,w) = -1, \quad B(v,w) = 0. \] Isso mostra que \(v\) é tipo-tempo, \(w\) é tipo-espaço, e eles são ortogonais em relação à forma \(B\).

Corolário 75.3 Seja \(V\) um \(\F\)-espaço vetorial de dimensão \(n\) com uma forma \(\sigma\)-hermitiana \(B\) não degenerada.

  1. Se \(\F=\R\), então \(\sigma=\mbox{id}_\R\) e \((V,B)\) é isométrico ao espaço \(\R^{p+q}\) com alguns \(q,p\) tais que \(p+q=n\).
  2. Se \(\F=\C\) e \(\sigma\) é o conjugado complexo, então \((V,B)\) é isométrico ao espaço \(\C^{p+q}\) com alguns \(q,p\) tais que \(p+q=n\).
  3. Se \(\F=\C\) e \(\sigma=\mbox{id}_\C\), então \(V\) é isométrico ao espaço \(\C^n\) com forma \(B_0\) onde \[ B_0(v,w)=v_1w_1+\cdots+v_nw_n. \] para \(v=(v_1,\ldots,v_n)\) e \(w=(w_1,\ldots,w_n)\).

75.4 Formas canônicas de matrizes associadas com formas

Corolário 75.4 Seja \(A\) uma matriz quadrada \(n\times n\) com entradas em um corpo \(\F\) de caraterística diferente de \(2\).

  1. Se \(A\) é simétrica, então existe uma matriz \(X\) com entradas em \(\F\) tal que \[ X^tAX \] é diagonal.
  2. Se \(\F=\C\) e \(A^*=A^{t\sigma}= A\), então existe \(X\) com entradas em \(\C\) tal que \[ X^{t\sigma}A X=I_{\pm 1,0} \] onde \(I_{\pm 1,0}\) é uma matriz diagonal com entradas \(-1,\ldots,-1,1,\ldots,1,0,\ldots,0\) na diagonal.
  3. Se \(\F=\C\) e \(A\) é simétrica, então existe \(X\) com entradas em \(\C\) tal que \[ X^tA X=I_0 \] onde \(I_0\) é matriz diagonal com entradas \(1,\ldots,1,0,\ldots,0\) na diagonal principal.
  4. Se \(\F=\R\) e \(A\) é simétrica, então existe \(X\) com entradas em \(\R\) tal que \[ X^tAX=I_{\pm 1,0} \] onde \(I_{\pm 1,0}\) é uma matriz diagonal com entradas \(-1,\ldots,-1,1,\ldots,1,0,\ldots,0\) na diagonal.

Comprovação. Em todos os casos considere a forma \(B_A\) com matriz \(A\) em uma base. Diagonalize a forma e aplique a formula para mudança de base no Lema 74.3.