68  Isometrias de espaços com formas

Definição 68.1 Sejam \((V,B)\) e \((W,C)\) \(\F\)-espaços vetoriais com formas sesquilineares reflexivas. Um morfismo entre \((V,B)\) e \((W,C)\) é uma transformação linear \(f:V\to W\) tal que \(C(f(v),f(w))=B(v,w)\) para todo \(v,w\in V\). Um morfismo bijetivo \(f:V\to W\) é chamado isometria. Dois espaços \((V,B)\) e \((W,C)\) são isométricos se existir uma isometria \(f:V\to W\).

Lema 68.1 Assuma que \(f\) é um morfismo entre \((V,B)\) e \((W,C)\). Então \(\ker f\leq \mbox{Rad}(B)\). Em particular, se \(B\) é não degenerada, então \(f\) é injetiva.

Comprovação. Seja \(v\in\ker f\) e \(w\in V\) arbitrário. Então \(B(v,w)=C(f(v),f(w))=0\) e \(v\in \mbox{Rad}(B)\). Se \(B\) for não degenerada, então \(\mbox{Rad}(B)=0\) e \(\ker f=0\) e, consequentemente, \(f\) é injetiva.

Corolário 68.1 Seja \(V\) um espaço vetorial de dimensão finita com forma sesquilinear reflexiva e não degenerada \(B\). Se \(f:V\to V\) é um morfismo, então \(f\) é uma isometria de \(V\). Em particular \(f\) é um automorfismo de \(V\).

Definição 68.2 Seja \(V\) um espaço com forma sesquilinear reflexiva \(B\). Um sistema de vetores \(X\) de \(V\) é dito ortogonal se \(B(b_i,b_j)=0\) (ou seja, \(b_i\perp b_j\)) para todo \(b_i,b_j\in X\) distintos. O sistema \(X\) é dito ortonormal se ele é ortogonal e \(Q(b_i)=B(b_i,b_i)=1\) para todo \(b_i\in X\).

Exercício 68.1 Seja \(B\) uma forma \(\sigma\)-sesquilinear reflexiva sobre um espaço \(V\).

  • Mostre que um sistema \(X\) ortogonal com \(Q(b,b)\neq 0\) para todo \(b\in X\) é l.i.
  • Seja \(X\) uma base ortogonal com \(Q(b,b)\neq 0\) para todo \(b\in X\). Mostre para \(v\in V\) que \[ v=\sum_{b\in X} \frac{B(v,b)}{B(b,b)}b \] (mostre que a soma na linha anterior é finita mesmo que \(X\) seja infinita).

Teorema 68.1 Seja \(V\) um \(\F\)-espaço de dimensão finita sobre um corpo de caraterística diferente de \(2\) e \(B\) uma forma \(\sigma\)-Hermitiana (incluindo simétrica). Então \(V\) possui uma base ortogonal.

Comprovação. Seja \(V_0=\mbox{Rad}(V)\) e escreva \(V=W\perp V_0\) com um complemento \(W\) de \(V_0\) qualquer. A restrição de \(B\) para \(W\) é não degenerada. Se \(X_W\) é uma base ortogonal de \(W\) e \(X_0\) é uma base qualquer de \(V_0\), então \(X_W\cup X_0\) é base ortogonal de \(V\). Então precisamos achar base ortogonal no espaço \(W\) e assumimos sem perder a generalidade que \(B\) é não degenerada em \(V\).

Avançamos por indução em \(\dim V\). Se \(\dim V=1\), então qualquer vetor \(v\in V\setminus\{0\}\) é uma base ortogonal. Assuma que espaços de dimensão \(n-1\) com formas não degeneradas têm bases ortogonais e assuma que \(\dim V=n\). Seja \(Q\) a forma quadrática associada com \(B\); ou seja \(Q(v)=B(v,v)\). Afirmamos que existe \(v\in V\) tal que \(Q(v)\neq 0\). Caso contrário, escolha \(u,v\in V\) tal que \(B(u,v)=1\) (eles existem) e obtenha por um lema na página anterior que \[ 0=B(u,v)+B(v,u)=B(u,v)+B(u,v)^\sigma=1+1^\sigma. \] Ou seja, \(1^\sigma=-1\). Mas se \(\mbox{car}(\F)\neq 2\), isso é impossível, pois \(1^\sigma=1\) para todo automorfismo de \(\F\). Logo existe vetor \(b_1\in V\) tal que \(Q(b_1)=B(b_1,b_1)\neq 0\). Seja \(U=\langle b_1\rangle\) e considere \(U^\perp\). Temos que \(\dim U^\perp=\dim V-1\) (\(B\) é não degenerada). Além disso, se \(w\) pertençe ao radical de \(B\) restringida a \(U^\perp\), então \(w\perp b_1\) e \(w\in\mbox{Rad}(B)\). Logo a restrição de \(B\) para \(U^\perp\) é não degenerada. Pela hipótese da indução \(U^\perp\) possui uma base \(\{b_2,\ldots,b_n\}\) ortogonal. Ora \(\{b_1,\ldots,b_n\}\) é base ortogonal de \(V\).

Exercício 68.2 Seja \(\sigma\in\mbox{Aut}(\R)\). Mostre que

  • se \(x\) é positivo, então \(x^\sigma\) é positivo;
  • \(\sigma\) é não decrescente;
  • \(\sigma\) é contínua;
  • sabendo que \(Q\subseteq \mbox{Fix}(\sigma)\), deduza que \(\sigma=\mbox{id}_\R\).

[Dica: consulte a discussão na página de StackExchange.]

Exercício 68.3 Seja \(\sigma\in\mbox{Aut}(\C)\) tal que \(\sigma\) é contínuo. Mostre que \(\sigma=\mbox{id}_\C\) ou \(\sigma\) é o conjugado complexo. [Dica: considere as raízes do polinômio \(t^2+1\).] Tem uma boa discussão dos automorfismos de \(\C\) que não são contínuos no StackExchange.

Corolário 68.2 Assuma que \(V\) e \(B\) são como no resultado anterior e assuma que \(B\) é não-degenerada.

  • Se \(\F=\C\) e \(\sigma=\mbox{id}_\C\), então \(V\) possui uma base ortonornal.
  • Se \(\F=\R\) ou \(\F=\C\) e \(\sigma\) é o conjugado complexo, então \(V\) possui uma base ortogonal \(\{b_1,\ldots,b_n\}\) tal que \(B(b_i,b_i)=\pm 1\). Além disso, o número \(p\) de \(b_i\) com \(B(b_i,b_i)=-1\) é independente a base escolhida.

Comprovação. Assuma que \(\{b_1,\ldots,b_n\}\) é base ortogonal de \(V\) e seja \(\alpha_i=B(b_i,b_i)\neq 0\).

  1. Se \(\F=\C\) e \(B\) é simétrica, então podemos substituir \(b_i\) por \(b_i'=(\alpha_i)^{1/2} b_i\) e \(\{b_1',\ldots,b_n'\}\) é base ortonormal.

  2. Ponha \(b_i'=|\alpha_i|^{1/2}b_i\). Ora \(\{b_1',\ldots,b_n'\}\) é base com \(B(b_i',b_i')=\pm 1\).

Assuma agora que \(X=\{b_1,\ldots,b_k,b_{k+1},\ldots,b_n\}\) é base de \(V\) tal que \(Q(b_i)=-1\) para \(i\in\{1,\ldots,k\}\) e \(Q(b_i)=1\) para os demais \(i\). Seja \(Y=\{c_1,\ldots,c_m,c_{m+1},\ldots,c_n\}\) uma outra base com \(Q(c_j)=-1\) para \(j\in\{1,\ldots,m\}\) e \(Q(c_j)=1\) para os demais \(j\). Assuma que \(k\geq m\). Afirmamos que \[ b_1,\ldots,b_k,c_{m+1},\ldots,c_n \] é um sistema L.I. Assuma que \[ \alpha_1b_1+\cdots +\alpha_kb_k+\alpha_{m+1}c_{m+1}+\cdots+\alpha_nc_n=0. \] Logo \[ \alpha_1b_1+\cdots+ \alpha_kb_k=-\alpha_{m+1}c_{m+1}-\cdots-\alpha_nc_n. \] Aplicando \(Q\) nos vetores \(v\) e \(w\) nos dois lados da equação acima, obtemos que \(Q(v) \leq 0\), enquanto \(Q(w) \geq 0\). Portanto \(Q(v)=Q(w)=0\) e \(\alpha_i=0\) para todo \(i\). Isso implica que \(k+n-m\leq n\); ou seja, \(k\leq m\); ou seja \(k=m\).

Definição 68.3 O par \((p,n-p)\) no resultado anterior é chamado assinatura de \(B\). A assinatura está bem definida nas situações do item 2. no corolário anterior.

Definição 68.4 O espaço \(\R^{p+q}\) (também denotado por \(\R^{p,q}\)) é o espaço vetorial \(\R^{p+q}\) com forma simétrica \(B\) com matriz diagonal com \(-1,\ldots,-1,1,\ldots,1\) na diagonal (\(-1\) repetendo \(p\) vezes e \(1\) repetendo \(q\) vezes). O espaço \(\C^{p+q}\) está definido na mesma forma, mas tomamos uma forma \(\sigma\)-hermitiana com \(\sigma\) sendo o conjugado complexo.

Exemplo 68.1 Note que \(\R^{0+q}\) é o espaço \(\R^q\) com o produto interno usual em \(\R^q\). O espaço \(\R^{1+3}\) é o espaço de Lorentz usado na relatividade especial.

Corolário 68.3 Seja \(V\) um \(\F\)-espaço vetorial de dimensão \(n\) com uma forma \(\sigma\)-hermitiana \(B\) não degenerada.

  • Se \(\F=\R\), então \(\sigma=\mbox{id}_\R\) e \((V,B)\) é isométrico ao espaço \(\R^{p+q}\) com alguns \(q,p\) tais que \(p+q=n\).
  • Se \(\F=\C\) e \(\sigma\) é o conjugado complexo, então \((V,B)\) é isométrico ao espaço \(\C^{p+q}\) com alguns \(q,p\) tais que \(p+q=n\).
  • Se \(\F=\C\) e \(\sigma=\mbox{id}_\C\), então \(V\) é isométrico ao espaço \(\C^n\) com forma \(B_0\) onde \[ B_0(v,w)=v_1w_1+\cdots+v_nw_n. \] para \(v=(v_1,\ldots,v_n)\) e \(w=(w_1,\ldots,w_n)\).

Corolário 68.4 Seja \(A\) uma matiz com entradas em um corpo \(\F\) de caraterística diferente de \(2\).

  • Se \(A\) é simétrica, então existe uma matriz \(X\) com entradas em \(\F\) tal que \[ XAX^t \] é diagonal.
  • Se \(\F=\C\) e \(A^t=\overline A\) (conjugada complexa de \(A\)), então existe \(X\) com entradas em \(\C\) tal que \[ XA\overline X^t=I_{\pm 1,0} \] onde \(I_{\pm 1,0}\) é uma matriz diagonal com entradas \(-1,\ldots,-1,1,\ldots,1,0,\ldots,0\) na diagonal.
  • Se \(\F=\C\) e \(A\) é simétrica, então existe \(X\) com entradas em \(\C\) tal que \[ XA X^t=I_0 \] onde \(I_0\) é matriz diagonal com entradas \(1,\ldots,1,0,\ldots,0\) na diagonal principal.
  • Se \(\F=\R\) e \(A\) é simétrica, então existe \(X\) com entradas em \(\R\) tal que \[ XAX^t=I_{\pm 1,0} \] onde \(I_{\pm 1,0}\) é uma matriz diagonal com entradas \(-1,\ldots,-1,1,\ldots,1,0,\ldots,0\) na diagonal.

Comprovação. Em todos os casos considere a forma \(B_A\) com matriz \(A\) em uma base. Diagonalize a forma e aplique a formula para mudança de base na página anterior.