28  Números complexos

Definição 28.1 Um número complexo é uma expressão na forma \(a+bi\) onde \(a,b\in \R\) e \(i\) é uma quantidade com a propriedade que \[ i^2=-1. \] As operações da soma e multiplicação entre números complexos são definidas na seguinte maneira: \[\begin{align*} (a_1+a_2i)+(b_1+b_2i)&=(a_1+b_1)+(a_2+b_2)i;\\ (a_1+a_2i)(b_1+b_2i)&=a_1b_1-a_2b_2+(a_1b_2+a_2b_1)i.\\ \end{align*}\] Ou seja, a soma está calculada por coordenadas, enquanto a multiplicação está feita usando a lei distributiva e a regra que \(i^2=-1\).

O conjunto de todos os números complexos é denotado por \(\C\). Em outras palavras, \[ \C=\{a+bi\mid a,b\in \R\}=\R+\R i. \] Os números complexos podem ser visualizados em um plano chamado de plano complexo. Cada número complexo pode ser visto como um vetor neste plano e a soma entre números complexos corresponde à soma de vetores.

Definição 28.2 Se \(z=a+bi\in\C\), então \(a\in\R\) é dita parte real e \(b\in\R\) é chamado de parte imaginária de \(z\). Escrevemos que \[ a=\real z \qquad\mbox{e}\qquad b=\imag z. \] Assim, temos que \(z=\real z+\imag z i\).

Note que \(\R\) pode ser identificado com o subconjunto \[ \{a+0i\mid a\in\R\} \] dentro de \(\C\) e assim nós podemos considerar \(\R\) como um subconjunto de \(\C\). Se \(a+0i,b+0i\in \R\), então a sua soma e produto são os mesmos que nós já conhecemos em \(\R\): \[\begin{align*} (a+0i)+(b+0i)=(a+b)+0i;\\ (a+0i)(b+0i)=(ab)+0i. \end{align*}\]

Uma outra maneira de enxergar \(\C\) é visualizar como um espaço vetoriais de dimensão 2 sobre \(\R\). De fato, se \(a\in \R\) e \(z=b_1+b_2i\) então \[ az=(a+0i)(b_1+b_2i)=ab_1+ab_2i. \] Ou seja, multiplicação por \(a\) corresponde ao múltiplo escalar de vetores em \(\R^2\).

Lema 28.1 As seguintes propriedades são válidas para todo número complexo \(z_1\), \(z_2\), \(z_3\):

  1. A soma é associativa: \((z_1+z_2)+z_3=z_1+(z_2+z_3)\).
  2. A soma é comutativa: \(z_1+z_2=z_2+z_1\).
  3. \(0=0+0i\) é elemento neutro da soma: \(z_1+0=0+z_1=z_1\).
  4. \(-z=-a-bi\) é negativo de \(z=a+bi\); ou seja, \(z+(-z)=0\).
  5. O produto é associativo: \((z_1z_2)z_3=z_1(z_2z_3)\).
  6. O produto é comutativo: \(z_1z_2=z_2z_1\).
  7. \(1=1+0i\) é elemento neutro do produto: \(1z_1=z_11=z_1\).
  8. a lei distributiva: \(z_1(z_2+z_3)=z_1z_2+z_1z_3\) e \((z_1+z_2)z_3=z_1z_3+z_2z_3\).

Comprovação. Exercício

Para um número complexo, \(z=a+bi\), definimos \(\bar z=a-bi\). O número \(\bar z\) é dito conjugado complexo. Pode-se também definir a norma, comprimento, ou módulo de um número complexo \(z=a+bi\in\C\): \[ |z|=\sqrt{a^2+b^2}. \] Note que a norma de \(z\) está definida usando o Teorema de Pitágoras e a norma dos números complexos satisfaz as propriedades já conhecidas do comprimento de vetores em \(\R^2\).

Lema 28.2 As seguintes propriedades estão válidas para a norma \(|z|\) de um número complexo \(z\in\C\).

  1. \(|z|\) é um número real não negativo.
  2. \(|z|=0\) se e somente se \(z=0\);
  3. \(|z_1+z_2|\leq |z_1|+|z_2|\);
  4. \(|z_1z_2|= |z_1||z_2|\).

Lema 28.3 Temos que

  1. \(z=\bar z\) se e somente se \(z\in\R\);
  2. \(z+\bar z=2\cdot \real z\);
  3. \(z-\bar z=2i\cdot \imag z\);
  4. \(z\bar z=|z|^2\);
  5. \(\overline{z_1+z_2}=\overline{z_1}+\overline{z_2}\);
  6. \(\overline{z_1z_2}=\overline{z_1}\overline{z_2}\).

Se \(z=a+bi\in\C\setminus\{0\}\), então temos que \(z\bar z=|z|^2=a^2+b^2\neq 0\). Logo \[ 1=z\left(\frac{\bar z}{|z|^2}\right)=z\left(\frac{a-bi}{a^2+b^2}\right). \] Em outras palavras, \(\bar z/|z|^2=(a-bi)/(a^2+b^2)\) é inverso multiplicativo de \(z\).

Lema 28.4 Todo número complexo \(z=a+bi\) não nulo possui inverso multiplicativo \(z^{-1}\). Além disso, \[ z^{-1}=\frac{\bar z}{|z|^2}=\frac{a-bi}{a^2+b^2}. \] Em particular, \((\C,+,\cdot)\) é um corpo

Com o inverso multiplicativo, podemos dividir números complexos. De fato, se \(z_1,z_2\in\C\) com \(z_2\neq 0\), então definimos \[ \frac{z_1}{z_2}=z_1/z_2=z_1\cdot z_2^{-1}. \] Note que divisão por zero não é permitido nem com números complexos!

Seja \(z=a+bi\in \C\). O argumento \(\argz z\) de \(z\) é o ângulo \(\vartheta\) que o vetor \(z\) tem com a meia reta \([0,\infty]\). Usando o argumento, se pode escrever \(z\) como \[ z=|z|(\cos\vartheta+i\sen\vartheta). \] A forma \(z=a+bi\) é chamada forma vetorial do número complexo \(z\). A forma \(z=|z|(\cos\vartheta+i\sen\vartheta)\) é chamada forma polar. O argumento de um número complexo não é unicamente definido, pois se \(\vartheta\) é argumento de \(z\in\C\), então os outros argumentos são ângulos na forma \(\vartheta+2k\pi\) onde \(k\in\Z\). Note que existe único argumento de \(z\) no intervalo \([0,2\pi)\) e também no intervalo \((-\pi,\pi]\).

Mais geralmente cada expressão \[ z=r(\cis\vartheta),\quad r\in[0,\infty)\mbox{ e } \vartheta\in\R \] define um número complexo. O número \(r\) é igual à norma de \(z\) (e assim precisa ser um número real não negativo) e \(\vartheta\) é um dos argumentos. Note que se \(r=0\), então \(z=0\cdot(\cis\vartheta)=0\) para todo \(\vartheta\). O argumento do número zero não está definido. Por outro lado, se \(r_1,r_2>0\) então \[ r_1(\cis{\vartheta_1})=r_2(\cis{\vartheta_2}) \] se e somente se \[ r_1=r_2 \quad\mbox{e}\quad \vartheta_1-\vartheta_2=2k\pi\quad\mbox{com}\quad k\in\Z. \] O número \(z=r(\cis \vartheta)\) está ferquentamente escrito como \[ r(\cis\vartheta)=r\exp(i\vartheta)=r\cdot e^{i\vartheta}. \] Neste momento, tratamos esta expressão apenas como notação. Ela pode ser justificada, por exemplo, considerando as séries de Taylor das funções \(\exp\), \(\cos\), \(\sen\). Um caso particular, desta equação é a famosa Identidade de Euler \[ -1=\cos \pi+i\sen\pi=\exp(i\pi)=e^{i\pi}. \] Para aprender mais sobre esta identidade fascinante, recomendamos assistir os vídeos dos canais 3Blue1Brown e Mathologer.

Note que fazer a adição com a forma vetorial é fácil, mas a multiplicação é bagunçada. A vantagem da forma polar é que a multiplicação vira mais natural. Antes de explictar esta observação, lembremos as identidades trigonométricas bem conhecidas: \[\begin{align*} \sen{(\alpha+\beta)}&=\sen\alpha\cos\beta+\cos\alpha\sen\beta\\ \cos{(\alpha+\beta)}&=\cos\alpha\cos\beta-\sen\alpha\sen\beta. \end{align*}\]

Lema 28.5 Sejam \[\begin{align*} z_1&=r_1(\cos\vartheta_1+i\sen\vartheta_1)=r_1\exp(i\vartheta_1)\mbox{ e}\\ z_2&=r_2(\cos\vartheta_2+i\sen\vartheta_2)=r_1\exp(i\vartheta_2) \end{align*}\] números complexos. Então \[ z_1z_2=r_1r_2(\cos(\vartheta_1+\vartheta_2)+i\sen(\vartheta_1+\vartheta_2))= r_1r_2\exp(i(\vartheta_1+\vartheta_2)). \] Consequentemente, \(\argz{z_1z_2}=\argz{z_1}+\argz{z_2}\)

Comprovação. Vamos calcular que \[\begin{align*} z_2z_2&=r_1(\cos\vartheta_1+i\sen\vartheta_1)r_2(\cos\vartheta_2+i\sen\vartheta_2)\\&= r_1r_2(\cos\vartheta_1\cos\vartheta_2-\sen\vartheta_1\sen\vartheta_2+i(\sen\vartheta_1\cos\vartheta_2+\cos\vartheta_1\sen\vartheta_2))\\ &=r_1r_2(\cos{(\vartheta_1+\vartheta_2)}+i\sen{(\vartheta_1+\vartheta_2)}). \end{align*}\] Pronto.

Corolário 28.1 Se \[ z=r(\cis\vartheta)=r\exp(i\vartheta)\in\C\setminus\{0\} \] (ou seja, \(r\neq 0\)), então \[ z^{-1}=r^{-1}(\cis{(-\vartheta)}). \] Além disso, se \[\begin{align*} z_1&=r_1(\cos\vartheta_1+i\sen\vartheta_1)=r_1\exp(i\vartheta_1);\\ z_2&=r_2(\cos\vartheta_2+i\sen\vartheta_2)=r_1\exp(i\vartheta_2) \end{align*}\] com \(z_2\neq 0\), então \[ \frac{z_1}{z_2}=z_1z_2^{-1}=\frac{r_1}{r_2}(\cis{(\vartheta_1-\vartheta_2)})= \frac{r_1}{r_2}\exp{(i(\vartheta_1-\vartheta_2))}. \]

Comprovação. Vamos calcular que \[\begin{align*} z\cdot r^{-1}(\cis{(-\vartheta)})&=r(\cis{(\vartheta)})\cdot r^{-1}(\cis{(-\vartheta)})\\&=rr^{-1}(\cis{0})=1. \end{align*}\] Isso implica que \(z^{-1}=r^{-1}(\cis{(-\vartheta)})\). A outra igualdade sobre \(z_1\) e \(z_2\) é consequência disso

Corolário 28.2 Se \(z=r(\cos\vartheta+i\sen\vartheta)\), e \(k\geq 1\), então \[ z^k=r^k(\cos(k\vartheta)+i\sen{(k\vartheta)}). \]

Comprovação. Segue imediatamente do lema anterior

Se \(k\in\Z\) negativo e \(z\in\C\setminus\{0\}\), então \(z^k\) está definido como \((z^{-1})^{-k}\). Por exemplo, \(z^{-5}=(z^{-1})^5\). Note que para \(z=r(\cos\vartheta+i\sen\vartheta)\) não nulo, a igualdade \[ z^k=r^k(\cos(k\vartheta)+i\sen{(k\vartheta)}). \] está válida para todo \(k\in\Z\) (ou seja, também para \(k\) negativo). A verificação deste fato será tarefa do leitor.

Um número complexo \(z\in\C\) é dita \(k\)-ésima raiz da unidade se \(z^k=1\).

Lema 28.6 Se \(k\geq 1\), então \(\C\) possui \(k\) \(k\)-ésimas raízes distintas da unidade; nomeadamente, \[ \xi_j=\cos{\frac{2j\pi}{k}}+i\sen{\frac{2j\pi}{k}}\quad\mbox{com}\quad j=0,\ldots,k-1. \]

Comprovação. Primeiro, \[ \xi_j^k=\cos{(2j\pi)}+i\sen{(2j\pi)}=1. \] Então \(\xi_j\) é \(k\)-ésima raiz da unidade para todo \(j\). Afirmamos que os \(\xi_j\) são distintos. Se \(\xi_j=\xi_m\) com \(0\leq j\leq m\leq k-1\), então \(2m\pi/k-2j\pi/k\) é um múltiplo de \(2\pi\). Assuma que \(2m\pi/k-2j\pi/k=2\ell\pi\) com \(\ell\in\Z\). Por outro lado, \[ \frac{2m\pi}k-\frac{2j\pi}k=\frac{2(m-j)\pi}k. \] Como \(0\leq m-j\leq k-1\), obtemos que \(2(m-j)\pi/k=2\ell\pi\) é possível apenas para \(\ell=0\). Logo \(m=j\) e os \(\xi_j\) com \(j\in\{0,\ldots,k-1\}\) são distintos.

Para provar que elas são as únicas raízes, assuma que \(\xi=r(\cos\vartheta+i\sen\vartheta)\) é uma \(k\)-ésima raiz da unidade; ou seja, \(\xi^k=1\). Primeiro, observe que \(1=|1|=|\xi^k|=r^k\) e isso implica que \(r=1\) e \(\xi=\cos\vartheta+i\sen\vartheta\). Ademais, \[ 1=\xi^k=\cos{(k\xi)}+i\sen{(k\xi)}. \] Portanto \(k\xi=2j\pi\) com algum \(j\in\Z\). Assumindo sem perder generalidade que \(\xi\in[0,2\pi)\), \(j=0,\ldots,k-1\) e \(\xi=2j\pi/k\) com \(j=0,\ldots,k-1\). Isso implica que \(\xi=\xi_j\).

Note que \(\xi_0=1\) e quando \(k\) for par, então \(\xi_{k/2}=-1\).

Corolário 28.3 Seja \(z\in\C\) um número complexo não nulo e \(k\geq 1\). Existem exatamente \(k\) números distintos \(z_0,\ldots,z_{k-1}\in\C\) tais que \(z_j^k=z\). Os números \(z_j\) são chamados \(k\)-ésimas raízes de \(z\)

Comprovação. Seja \(z=r(\cos\vartheta+\sen\vartheta)\) e ponha \[ z_0=\sqrt[k]r(\cos{(\vartheta/k)}+i\sen{(\vartheta/k)}). \] Claramente, \[ z_0^k=(\sqrt[k]r)^k(\cos\vartheta+i\sen\vartheta)=z. \] Além disso, sejam \(\xi_0,\ldots,\xi_{k-1}\) as \(k\)-ésimas raízes da unidade com \(\xi_0=1\) e defina \[ z_j=\xi_jz_0\quad\mbox{para todo}\quad j\in\{0,\ldots,k-1\}. \] Temos que \[ (z_j)^k=(\xi_jz_0)^k=\xi_j^jz_0^k=z. \] Para provar que \(z_0,\ldots,z_{k-1}\) são distintos, note que se \(z_j=z_m\), então \(\xi_jz_0=\xi_mz_0\) e a lei cancelativa implica que \(\xi_j=\xi_m\) e \(j=m\).

Para provar que não tem mais \(k\)-ésimas raízes de \(z\), note que se se \(\zeta\in\C\) tal que \(\zeta^k=z\), então \((\zeta z_0^{-1})^k=1\) e \(\zeta z_0^{-1}\) é uma \(k\)-ésima raiz da unidade. Isso implica que \(\zeta z_0^{-1}=\xi_j\) com algum \(j\). Portanto \(\zeta=\xi_jz_0\) e assim obtivemos todas as \(k\)-ésimas raízes de \(z\).

O argumento da prova anterior dá expressões explícitas para as \(k\)-ésimas raízes de \(z\in\C\).

Corolário 28.4 Assuma que \(z=r(\cis{\vartheta})\in\C\) com \(r\neq 0\) e \(k\geq 0\). As \(k\)-ésimas raízes de \(z\) são \[ z_j=\sqrt[k]r\left(\cis{\frac{\vartheta+2j\pi}{k}}\right)\quad\mbox{com}\quad j=0,\ldots,k-1. \]

Comprovação. Calculando o produto \(z_j=z_0\xi_j\) na demonstração anterior, temos que \[\begin{align*} z_j&=z_0\xi_j=\sqrt[k]r(\cos{(\vartheta/k)}+i\sen{(\vartheta/k)})\left(\cos{\frac{2j\pi}{k}}+i\sen{\frac{2j\pi}{k}}\right)\\&=\sqrt[k]r\left(\cis{\frac{\vartheta+2j\pi}{k}}\right)x. \end{align*}\]