Definição 67.1 Se \(\F\) é um corpo, uma aplicação bijetiva \(\sigma:\F\to \F\), \(a\mapsto a^\sigma\), chama-se automorfismo, se
- \((a+b)^\sigma=a^\sigma+b^\sigma\);
- \((ab)^\sigma=a^\sigma b^\sigma\).
Exemplo 67.1
A bijeção \(\mbox{id}_\F\) é automorfismo para todo corpo \(\F\). Este automorfismo chama-se automorfismo trivial. Os corpos \(\Q\), \(\Z_p\) não têm automorfismos não triviais (consegue demonstrar?).
Se \(\F=\C\), então \(\sigma:\C\to \C\), \(z^\sigma=\bar z\) (conjugado complexo) é um automorfismo de \(\C\).
Se \(\F\) é um corpo de caraterística \(p\) (primo), então a aplicação \(\varphi:a\mapsto a^p\) é injetiva e satisfaz as duas propriedades na definição de automorfismo. Para um corpo arbitrário, \(\varphi\) não precisa ser sobrejetiva, mas se \(\F\) é finito, então \(\varphi\), sendo injetiva, será obrigatoriamente sobrejetiva e é um automorfismo. O automorfismo \(\varphi\) de um corpo finito \(\F\) é chamado de automorfismo de Frobenius.
É fácil provar que a composição de automorfismos é automorfismo. Em particular, se \(\F\) é um corpo finito de caraterística \(p\), então \[
\varphi^k:\F\to \F, \quad a\mapsto a^{p^k}
\] é um automorfismo de \(\F\). Vocês vão aprender na disciplina Grupos e Corpos que todos os automorfismos de corpos finitos têm esta forma.
Se \[
\F=\{a+b\sqrt 2\mid a,b \in \Q\},
\] então \(a+b\sqrt 2\mapsto a-b\sqrt 2\) é um automorfismo.
Definição 67.2 Seja \(V\) um \(\F\)-espaço vetorial e \(\sigma:\F\to\F\) um automorfismo. Uma aplicação \(B:V\times V\to \F\) chama-se forma \(\sigma\)-sesquilinear se
- \(B(\alpha u+\beta v,w)=\alpha B(u,w)+\beta B(v,w)\).
- \(B(u,\alpha v+\beta w)=\alpha^\sigma B(u,v)+ \beta^\sigma B(u,w)\).
Ou seja, uma forma sesquilinear, é uma forma de duas variáveis que é linear na primeira variável e \(\sigma\)-semilinear na segunda.
Definição 67.3 Dada uma forma \(B:V\times V\to \F\) sesquilinear, definimos os radicais da forma \[
\mbox{Rad}_L(B)=\{v\in V\mid B(v,w)=0\mbox{ para todo }w\in V\}
\] e \[
\mbox{Rad}_R(B)=\{w\in V\mid B(v,w)=0\mbox{ para todo }v\in V\}.
\] O \(\mbox{Rad}_L(B)\) chama-se radical à esquerda, enquanto \(\mbox{Rad}_R(B)\) chama-se radical à direita.
Definição 67.4 Assuma que \(B:V\times V\to \F\) é uma forma sesquilinear sobre um espaço \(V\) de dimensão \(n\), finita. Seja \(X=\{b_1,\ldots,b_n\}\) uma base de \(V\). Definimos a matriz de Gram de \(B\) como a matriz \(G_X(B)=(B(b_i,b_j))_{i,j}\).
Lema 67.1 Sejam \(V\) e \(B\) como na definição anterior, assuma que \(u,v\in V\) e denote por \([u]_X\) e \([v]_X\) os vetores colunas das coordenadas de \(u\) e \(v\) na base \(X\), respetivamente. Se \((\alpha_1,\ldots,\alpha_n)\in\F^n\), então denote \[
(\alpha_1,\ldots,\alpha_n)^\sigma=(\alpha_1^\sigma,\ldots,\alpha_n^\sigma).
\] Temos que \[
B(u,v)=([u]_X)^t G_X(B) ([v]_X)^\sigma.
\]
Exercício 67.1 Demonstre que se \(\dim V\) é finita, então \(\dim \mbox{Rad}_L=\dim \mbox{Rad}_R\). (Dica: Use o Lema anterior para obter sistemas de equações lineares para caraterizar \(\mbox{Rad}_L\) e \(\mbox{Rad}_R\) e mostre que os espaços de soluções têm a mesma dimensão.)
Exercício 67.2 Seja \(A=(a_{i,j})\in M_{n\times n}(\F)\) e denote por \(A^\sigma\) a matriz \((a_{i,j}^\sigma)\). Demonstre que \[
(A+B)^\sigma =A^\sigma+B^\sigma\quad\mbox{e}\quad (AB)^\sigma=A^\sigma B^\sigma.
\]
Lema 67.2 Assuma que \(V\) tem dimensão finita e sejam \(X\) e \(Y\) bases de \(V\). Então \[
G_Y(B)=([\mbox{id}]^Y_X)^t G_X(B) [\mbox{id}^Y_X]^\sigma
\] onde \([\mbox{id}^Y_X]^\sigma\) denota a matriz que obtemos de \([\mbox{id}^Y_X]\) aplicando \(\sigma\) em todas as suas entradas.
Comprovação. Sejam \(v,w\in V\). Vamos calcular que \[\begin{align*}
&([v]_Y)^t([\mbox{id}]^Y_X)^t G_X(B) [\mbox{id}^Y_X]^\sigma ([w]_Y)^\sigma\\
&=([\mbox{id}]^Y_X [v]_Y)^tG_X(B)([\mbox{id}^Y_X][w]_Y)^\sigma\\
&=([v]_X)^tG_X(B)([w]_X)^\sigma =B(v,w).
\end{align*}\] Isso implica que \(G_Y(B)=([\mbox{id}]^Y_X)^t G_X(B) [\mbox{id}^Y_X]^\sigma\).
Definição 67.5 Uma forma \(\sigma\)-sesquilinear \(B\) chama-se reflexiva, se \(B(u,v)=0\) implica que \(B(v,u)=0\). Se \(B\) é uma forma refexiva, então \(\mbox{Rad}_L(B)=\mbox{Rad}_R(B)\) e este espaço é chamado de radical de \(B\) e será denotado por \(\mbox{Rad}(B)\). A forma \(B\) é dita não degenerada se \(\mbox{Rad}(B)=0\).
Definição 67.6 Seja \(B\) uma forma \(\sigma\)-sesquilinear.
- \(B\) é chamada \(\sigma\)-Hermitiana se \(B(u,v)=B(v,u)^\sigma\) para todo \(u,v\in V\).
- \(B\) é chamada alternada se \(B(u,u)=0\) para todo \(u\in U\).
Lema 67.3 As seguintes são verdadeiras para uma forma \(\sigma\)-sesquilinear não trivial:
- Se \(B\) é \(\sigma\)-Hermitiana, então \(\sigma^2=\mbox{id}_\F\).
- Se \(B\) é alternada, então \(B(u,v)=-B(v,u)\) para todo \(u,v\in V\).
- Se \(B\) é alternada, então \(\sigma=\mbox{id}_\F\).
- Se \(\mbox{car}(\F)\neq 2\), e \(B(u,v)=-B(v,u)\) para todo \(u,v\in V\), então \(B\) é alternada.
Comprovação.
Seja \(\alpha\in \F\) tal que \(\alpha=B(u,v)\) (tais \(u,v\) existem pois \(B\) é não trivial). Então \[
\alpha=B(u,v)=B(v,u)^\sigma=B(u,v)^{\sigma^2}=\alpha^{\sigma^2}.
\] Logo \(\alpha^{\sigma^2}=\alpha\) e \(\sigma^2=\mbox{id}_\F\).
Com \(u,v\in V\), calculemos que \[\begin{align*}
0&=B(u+v,u+v)=B(u,u)+B(u,v)+B(v,u)+B(v,v)\\&=B(u,v)+B(v,u).
\end{align*}\] Logo \(B(u,v)=-B(v,u)\).
Escolhe \(u,v\in V\) tal que \(B(u,v)=-B(v,u)=1\) (é possível trocando \(u\) por um múltiplo escalar) e seja \(\alpha\in \F\). Agora \[
\alpha^\sigma=B(u,\alpha v)=-B(\alpha v,u)=-\alpha B(v,u)=\alpha.
\] Ou seja \(\alpha^\sigma=\alpha\) para todo \(\alpha\in\F\) e \(\sigma=\mbox{id}_\F\).
Assuma que \(B(u,v)=-B(v,u)\) para todo \(u,v\). Então \(B(u,u)=-B(u,u)\) ou seja \(2B(u,u)=0\) para todo \(u\in V\). Se a caraterística do corpo é diferente de \(2\), isso implica que \(B(u,u)=0\) para todo \(u\in V\).
Definição 67.7 Uma forma \(\sigma\)-Hermitiana é chamada simétrica se \(\sigma=\mbox{id}_\F\). Se \(B\) é simétrica, então \(B(u,v)=B(v,u)\) para todo \(u,v\in V\).
Exercício 67.3 Seja \(B\) uma forma \(\sigma\)-Hermitiana (incluindo simétrica) ou alternada sobre \(V\) de dimensão finita. Seja \(G=G_X(B)\) a matriz de Gram de \(B\) em uma base \(X\) de \(V\). Mostre que
- \(B\) é simétrica se e somente se \(G^t=G\);
- \(B\) é alternada se e somente se \(G^t=-G\);
- \(B\) é \(\sigma\)-Hermitiana se e somente se \(G^t=G^\sigma\).
Teorema 67.1 (O Teorema de Birkhoff-von Neumann) Seja \(B\) uma forma \(\sigma\)-sesquilinear reflexiva com \(\dim (V/\mbox{Rad}(B))\geq 2\). Então
- \(B\) é alternada; ou
- \(B\) é simétrica; ou
- \(B\) é múltiplo escalar de uma forma \(\sigma\)-Hermitiana com \(\sigma\neq \sigma^2=\mbox{id}_\F\)
Comprovação. Nós não demonstramos este teorema. A leitora interessada na demonstração pode consultar as notas de Nick Gill.
Definição 67.8 Se \(V\) é um espaço com forma sesquilinear reflexiva \(B\), então \(u,v\in V\) são ditos ortogonais se \(B(u,v)=0\). Escrevemos neste caso que \(u\perp v\).
Exemplo 67.2 Se \(B\) é alternada e \(v\in V\), então \(v\perp v\).
Exercício 67.4 Seja \(\sigma:\F\to\F\) um automorfismo. Denote por \(\mbox{Fix}(\F)=\{a\in\F\mid a^\sigma=a\}\). Mostre que \(\mbox{Fix}(\sigma)\) é um corpo.
Definição 67.9 Seja \(B:V\times V\to \F\) uma forma \(\sigma\)-Hermitiana (incluindo formas simétricas). Defina \(Q:V\to \F\) como \(Q(v)=B(v,v)\). Então \(Q\) é chamada de forma quadrática associada com \(B\).
Lema 67.4 Usando a notação da definição anterior, as seguintes afirmações são válidas para todo \(u,v\in V\) e \(\alpha\in\F\):
- \(Q(v)\in\mbox{Fix}(\sigma)\);
- \(Q(\alpha v)=\alpha\alpha^\sigma Q(v)=\alpha^{\sigma+1}Q(v)\);
- se \(B\) é simétrica, então \(Q(\alpha v)=\alpha^2 Q(v)\);
- \(Q(u+v)-Q(u)-Q(v)=B(u,v)+B(v,u)=B(u,v)+B(u,v)^\sigma\);
- se \(u\perp v\), então \(Q(u+v)=Q(u)+Q(v)\) (Teorema de Pitágoras);
- \(Q(u+v)+Q(u-v)=2Q(u)+2Q(v)\) (Regra do Paralelogramo);
- se \(B\) for simétrica, então \(Q(u+v)-Q(u)-Q(v)=2B(u,v)\).
Em particular, se \(B\) for simétrica e \(\mbox{car}(\F)\neq 2\), então \[
B(u,v)=\frac 12(Q(u+v)-Q(u)-Q(v))
\] e \(B\) está determinada por \(Q\).
Comprovação. Simples, só aplicar a definição de \(Q\).
Definição 67.10 Seja \(V\) com forma \(\sigma\)-hermitiana \(B\). Um vetor \(v\in V\) é dito isotrópico se \(Q(v)=B(v,v)=0\).
Exemplo 67.3 Se \(V=\R^n\) ou \(\C^n\) e \(B\) é o produto interno usual, então \(0\) é o único vetor isotrôpico.
Exercício 67.5 Seja \(V\) um espaço de dimensão maior ou igual a \(2\) sobre \(\C\) e seja \(B\) uma forma simétrica em \(V\). Mostre que \(V\) possui um vetor não nulo isotrópico. Este exercício mostra que é mesmo necessário usar o conjugado complexo na segunda variável na definição do produto interno para \(\C\)-espaços. Usando formas simétricas, não é possível obter um produto interno que resulta em uma métrica.
Exercício 67.6 Seja \(B\) uma forma sesquilinear reflexiva sobre um espaço \(V\) de dimensão finita. Assuma que \(G\) é a matriz da forma em uma base de \(V\). Mostre que \(\dim \mbox{Rad}(V)=\dim V-\mbox{posto}(G)\). Em particular, \(B\) é não degenerada se e somente se \(G\) é invertível.
Definição 67.11 Seja \(V\) um espaço com forma sesquilinear reflexiva \(B\) e \(U\leq V\). Definimos o espaço ortogonal \(U^\perp\) de \(U\) como \[
U^\perp=\{v\in V\mid B(v,u)=0\mbox{ para todo }u\in U\}.
\]
Lema 67.5 As seguintes afirmações são válidas para o espaço ortogonal em relação a uma forma \(\sigma\)-sesquilinear reflexiva:
- \(U^\perp\leq V\);
- Se \(U\leq W\), então \(W^\perp\leq U^\perp\);
- \(\mbox{Rad}(V)=V^\perp\) e \(V^\perp\leq U^\perp\) para todo \(U\leq V\);
- Se \(B\) é não degenerada e \(\dim V\) é finita, então \(\dim U^\perp+\dim U=\dim V\).
Comprovação. As afirmações 1., 2., 3. são simples. Vamos provar apenas 4. Assuma que \(\dim V=n\), que \(X=\{b_1,\ldots,b_n\}\) é uma base de \(V\) tal que \(\{b_1,\ldots,b_k\}\) é base de \(U\), e seja \(G=G_X(B)\) a matriz de \(B\) na base \(X\). Temos por resultado anterior que um vetor \(v\) com \([v]_X=(\alpha_1,\ldots,\alpha_n)^t\) pertençe a \(U^\perp\) se e somente se \[
(\alpha_1,\ldots,\alpha_n)G [w]_B^\sigma =0\quad \mbox{para todo}\quad w\in U
\] que vale se e somente se \[
(\alpha_1,\ldots,\alpha_n)G [b_i]_B^\sigma =0\quad \mbox{para todo}\quad i\in\{1,\ldots,k\}.
\] A equação anterior é equivalente ao sistema de equações \[
(\alpha_1,\ldots,\alpha_n)G e_i =0\quad \mbox{para todo}\quad i\in\{1,\ldots,k\}
\] onde \(e_1,\ldots,e_n\) é a base canônica de \(\F^n\). Mas o sistema anterior é um sistema linear homogêneo com incôgnitas \(\alpha_1,\ldots,\alpha_n\) e a matriz desta sistema está formada pelas primeiras \(k\) linhas de \(G^t\). Como \(B\) é não degenerada, \(G^t\) tem posto \(k\) e o espaço de soluções tem dimensão \(n-k\).
Na situação do item 4. do resultado anterior, se \(U\cap U^\perp=0\), então \(V=U\oplus U^\perp\) e \(U^\perp\) é chamado de complemento ortogonal de \(U\). Neste caso, escrevemos que \(V=U\perp U^\perp\) para indicar que os dois espaços na decomposição são ortogonais.
Exemplo 67.4 Considere \(V=\C^2\) com a forma bilinear simétrica \(B(v,w)=v_1w_1+v_2w_2\) para \(v=(v_1,v_2)\) e \(w=(w_1,w_2)\) pertencentes a \(\C^2\). Observe que não aplicamos o conjugado complexo na segunda variável! Note que esta forma está não degenerada, pois na base canônica a sua matriz é a matriz identidade. Considere a base \(\{(1,i),(1,-i)\}\) de \(\C^2\). Nesta base, a matriz da forma é \[
\begin{pmatrix} 0 & 2 \\ 2 & 0\end{pmatrix}
\] Se \(U=\langle (1,i)\rangle\), então \(U^\perp =U\) e \(\C^2\neq U\oplus U^\perp\). Ou seja, o espaço ortogonal \(U^\perp\) não é complemento ortogonal de \(U\).