Produtos internos
Nossos espaços vetoriais têm mais estrutura do que a gente está usando. Em \(\R^2\) por exemplo aqui são duas bases diferentes:
Até agora, não temos como dizer que uma dessas bases é melhor que a outra. Mas, esteticamente pelo menos, a segunda base parece mais legal, pois:
Os comprimentos dos dois vetores da segunda base são iguais,
O ângulo entre os vetores da segunda base é \(90^{\tn{o}}\).
Vamos ver que de fato, na prática, a segunda base é bem mais útil do que a primeira. O conceito que estamos faltando para distinguir entre as duas é o produto interno.
Sejam \(V,W\) dois espaços vetoriais. Se lembre que o produto cartesiano \(V\times W\) é o conjunto dos pares \[V\times W = \{(\ul{v},\ul{w})\,|\,\ul{v}\in V,\,\ul{w}\in W\}.\]
Definição 47.1
Seja
\(V\) um espaço vetorial. Um
produto interno sobre \(V\) é uma função
\[\begin{aligned}
\langle-,-\rangle : V\times V & \to \,\,\,\,\R \\
(\ul{u},\ul{v}) & \mapsto \langle\ul{u},\ul{v}\rangle
\end{aligned}\]
que satisfaz as seguintes propriedades:
- (SIM): \(\langle \ul{u},\ul{v}\rangle = \langle \ul{v},\ul{u}\rangle\quad\forall\,\ul{u},\ul{v}\in V\),
- (LIN1): \(\langle \ul{u},\ul{v}+\ul{w}\rangle = \langle \ul{u},\ul{v}\rangle + \langle \ul{u},\ul{w}\rangle\quad\forall \ul{u},\ul{v},\ul{w}\in V\),
- (LIN2): \(\langle \ul{u},\lambda\ul{v}\rangle = \lambda\langle \ul{u},\ul{v}\rangle\quad \forall \lambda\in \R, \forall \ul{u},\ul{v}\in V\).
- (PD1): \(\langle \ul{v},\ul{v}\rangle \geqslant 0\,\forall \ul{v}\in V\)
- (PD2): \(\langle \ul{v},\ul{v}\rangle = 0\Longleftrightarrow \ul{v} = \ul{0}\).
Condição SIM diz que um produto interno é simétrico, pelas condições LIN1–LIN2, ele é linear no segundo componente (a gente vai ver que vai ser linear também no primeiro componente também), e finalmente as condições PD1–PD2 dizem que um produto interno é positivo definido.
Exemplo 47.1 O exemplo mais comum. Seja \(V = \R^n\) e considere o produto conhecido de GAAL: Dados \[\ul{u} = (a_1,a_2,\ldots,a_n)\quad,\quad \ul{v} = (b_1,b_2,\ldots,b_n),\] então \[\langle \ul{u},\ul{v}\rangle = \ul{u}\cdot \ul{v} = a_1b_1 + a_2b_2 + \cdots + a_nb_n = \sum_{i=1}^n a_ib_i.\] Tratando vetores de \(\R^n\) como matrizes colunas, \(\ul{u}\cdot \ul{v}\) pode ser interpretado como produto de matrizes: \[\ul{u}\cdot \ul{v} = \ul{u}^t\ul{v} = \begin{pmatrix}
a_1 & \cdots & a_n
\end{pmatrix} \begin{pmatrix}
b_1 \\ \vdots \\ b_n
\end{pmatrix}.\]
Afirmo que este produto satisfaz todas as propriedades da definição. Vamos confirmar, então sejam \[\ul{u} = (a_1,\ldots,a_n),\quad \ul{v} = (b_1,\ldots,b_n),\quad \ul{w} = (c_1,\ldots,c_n)\] vetores em \(\R^n\) e \(\lambda\in \R\):
\(\ul{u}\cdot \ul{v} = \sum_{i=1}^n a_ib_i = \sum_{i=1}^n b_ia_i = \ul{v}\cdot \ul{u}\quad\checkmark\)
- \[\begin{aligned}
\ul{u}\cdot (\ul{v}+\ul{w}) & = (a_1,\ldots,a_n)\cdot (b_1+c_1,\ldots,b_n+c_n) \\
& = \sum_{i=1}^n a_i(b_i+c_i) \\
& = \sum_{i=1}^n a_ib_i + a_ic_i \\
& = \sum_{i=1}^n a_ib_i + \sum_{i=1}^n a_ic_i \\
& = \ul{u}\cdot \ul{v} + \ul{u}\cdot \ul{w}.
\end{aligned}\]
Exercício.
\(\ul{v}\cdot \ul{v} = \sum_{i=1}^n b_ib_i = \sum_{i=1}^n {b_i}^2 \geqslant 0\).
\(0 = \ul{v}\cdot \ul{v} = \sum_{i=1}^n {b_i}^2 \implies b_i = 0\,\forall i\implies \ul{v} = \ul{0}\).
Então, o produto acima é um produto interno.
Na definiçao de produto interno, focamos no segundo componente. Mas, já que o produto é simétrico, as mesmas propriedades valem no primeiro componente:
Proposição 47.1 Seja \(\langle-,-\rangle:V\times V \to \R\) um produto interno. Então
- (LIN1’) \(\langle \ul{u}+\ul{v},\ul{w}\rangle = \langle \ul{u},\ul{w}\rangle + \langle \ul{v},\ul{w}\rangle\quad \forall \ul{u},\ul{v},\ul{w}\in V\),
- (LIN2’) \(\langle\lambda \ul{u},\ul{v}\rangle = \lambda\langle \ul{u},\ul{v}\rangle\quad\forall \lambda\in \R, \forall \ul{u},\ul{v}\in V\).
Comprovação.
- Temos
\[\begin{aligned}
\langle \ul{u}+\ul{v},\ul{w}\rangle & = \langle\ul{w},\ul{u}+\ul{v}\rangle\qquad\qquad (\hbox{por \textit{SIM}}) \\
& = \langle\ul{w},\ul{u}\rangle + \langle \ul{w},\ul{v}\rangle\qquad (\hbox{por \textit{LIN1}}) \\
& = \langle\ul{u},\ul{w}\rangle + \langle \ul{v},\ul{w}\rangle\qquad (\hbox{por \textit{SIM}})\,\,\checkmark
\end{aligned}\]
- Exercício.
◻
Norma e distância
Um espaço vetorial \(V\), junto com um produto interno \[V\times V\to \R\] será chamado de espaço vetorial com produto interno.
Definição 47.3 Seja \(V\) um espaço vetorial com produto interno \(\langle-,-\rangle\). A norma do vetor \(\ul{v}\in V\) é o número \[\|\ul{v}\| = \sqrt{\langle\ul{v},\ul{v}\rangle}.\]
A norma de um vetor representa o comprimento dele.
Exemplo 47.4 A norma de um vetor com respeito ao produto escalar normal de \(\R^n\) é simplesmente o comprimento do segmento que representa o vetor. Por exemplo, em \(\R^2\), a norma do vetor \(\ul{v} = (x,y)\) é \[\|\ul{v}\| = \sqrt{(x,y)\cdot (x,y)} = \sqrt{x^2 + y^2},\] que é, pelo teorema de Pitágoras, o comprimento do segmento que representa \(\ul{v}\):
Então, por exemplo \(\|(3,4)\| = \sqrt{3^2 + 4^2} = 5\) com respeito ao produto escalar normal.
Mas a norma de um vetor depende do produto interno. Por exemplo, considere \(\R^2\) com o produto interno \(\langle -,-\rangle_A\) dada pela matriz \[A = \begin{pmatrix}
2 & -1 \\ -1 & 2
\end{pmatrix}.\] A norma de \((x,y)\) com respeito a este produto interno é \[\|(x,y)\| = \sqrt{\begin{pmatrix}
x & y
\end{pmatrix}\begin{pmatrix}
2 & -1 \\ -1 & 2
\end{pmatrix}\begin{pmatrix}
x \\ y
\end{pmatrix}} = \sqrt{2(x^2 - xy + y^2)}.\] Por exemplo, \[\|(3,4)\| = \sqrt{2(3^2 - 3\cdot 4 + 4^2)} = \sqrt{26}\,\, (\neq 5).\]
A norma de um vetor não deve ser negativo e a norma de um vetor não nulo deve ser positiva. Isso é uma das razões para exigir que o produto interno seja positivo definido:
Proposição 47.3 Seja \(V\) um espaço vetorial com produto interno.
\(\|\ul{v}\|\geqslant 0\, \forall \ul{v}\in V\), e \(\|\ul{v}\| = 0 \Longleftrightarrow \ul{v} = \ul{0}\),
Dado um escalar \(\lambda\in \R\), \(\|\lambda\ul{v}\| = |\lambda|\cdot \|\ul{v}\|\).
Comprovação.
Imediato, já que o produto interno é positivo definido.
\(\|\lambda \ul{v}\| = \sqrt{\langle\lambda\ul{v},\lambda\ul{v}\rangle} = \sqrt{\lambda\langle \ul{v},\lambda\ul{v}\rangle} = \sqrt{\lambda^2\langle \ul{v},\ul{v}\rangle} = |\lambda|\sqrt{\langle\ul{v},\ul{v}\rangle} = |\lambda|\cdot \|\ul{v}\|\).
◻
Um vetor \(\ul{v}\) num espaço vetorial com produto interno é unitário se \(\|\ul{v}\| = 1\). Para qualquer vetor não nulo \(\ul{v}\), \(\|\ul{v}\|\neq 0\) e o vetor \(\frac{1}{\|\ul{v}\|}\ul{v}\) é unitário: \[\left\|\frac{1}{\|\ul{v}\|}\ul{v}\right\| = \frac{1}{\|\ul{v}\|}\|\ul{v}\| = 1\quad\checkmark\] Diremos que o vetor unitário \(\ul{v}/\|\ul{v}\|\) é a normalização do vetor \(\ul{v}\), ou o vetor \(\ul{v}\) normalizado.
A desigualdade de Cauchy-Schwarz
Umas propriedades mais sutis:
Proposição 47.4 Sejam \(\ul{u}, \ul{v}\) dois vetores num espaço vetorial com produto interno. Então \[|\langle\ul{u},\ul{v}\rangle| \leqslant \|\ul{u}\|\cdot \|\ul{v}\|.\]
Comprovação.
A desigualdade é imediata se
\(\ul v=\ul 0\). (confirme!), então vamos supor que
\(\ul{v}\neq \ul{0}\). Para qualquer número
\(\lambda\), temos
\[0\leqslant\|\ul{u} - \lambda\ul{v}\|^2 = \langle\ul{u}-\lambda\ul{v},\ul{u}-\lambda\ul{v}\rangle = \langle \ul{u},\ul{u}\rangle - 2\lambda\langle\ul{u},\ul{v}\rangle + \lambda^2\langle\ul{v},\ul{v}\rangle.\] Escolhemos um
\(\lambda\) espertamente. Pegue
\[\lambda = \frac{\langle \ul{u},\ul{v}\rangle}{\|\ul{v}\|^2}.\] Obtemos
\[\begin{aligned}
0 & \leqslant \langle \ul{u},\ul{u}\rangle - 2\lambda\langle\ul{u},\ul{v}\rangle + \lambda^2\langle\ul{v},\ul{v}\rangle \\
& = \|\ul{u}\|^2 - 2\lambda\langle\ul{u},\ul{v}\rangle + \lambda^2\|\ul{v}\|^2 \\
& = \|\ul{u}\|^2 - 2\frac{\langle\ul{u},\ul{v}\rangle^2}{\|\ul{v}\|^2} + \frac{\langle\ul{u},\ul{v}\rangle^2}{\|\ul{v}\|^2} \\
& = \|\ul{u}\|^2 - \frac{\langle\ul{u},\ul{v}\rangle^2}{\|\ul{v}\|^2}.
\end{aligned}\]
Rearranjando, obtemos \[\langle\ul{u},\ul{v}\rangle^2 \leqslant \|\ul{u}\|^2\cdot \|\ul{v}\|^2,\] e finalmente pegando raiz quadradas, \[|\langle\ul{u},\ul{v}\rangle| \leqslant \|\ul{u}\|\cdot \|\ul{v}\|.\] ◻
Exemplo 47.5
Vamos pegar dois vetores
\(\ul{u} = (1,-4), \ul{v} = (2,3)\) de
\(\R^2\) com produto interno dado pela matriz
\[A = \begin{pmatrix}
2 & -1 \\ -1 & 2
\end{pmatrix}\] e confirmar que a desigualdade está satisfeita. Temos
\[|\langle\ul{u},\ul{v}\rangle| = \left|\begin{pmatrix}
1 & -4
\end{pmatrix}\begin{pmatrix}
2 & -1 \\ -1 & 2
\end{pmatrix}\begin{pmatrix}
2 \\ 3
\end{pmatrix}\right| = \left|\begin{pmatrix}
1 & -4
\end{pmatrix}\begin{pmatrix}
1 \\ 4
\end{pmatrix}\right| = |-15| = 15,\] enquanto
\[\begin{aligned}
\|\ul{u}\|\cdot\|\ul{v}\| & = \sqrt{\begin{pmatrix}
1 & -4
\end{pmatrix}\begin{pmatrix}
2 & -1 \\ -1 & 2
\end{pmatrix}\begin{pmatrix}
1 \\ -4
\end{pmatrix}}\cdot\sqrt{\begin{pmatrix}
2 & 3
\end{pmatrix}\begin{pmatrix}
2 & -1 \\ -1 & 2
\end{pmatrix}\begin{pmatrix}
2 \\ 3
\end{pmatrix}} \\
& = \sqrt{42}\cdot \sqrt{14} = 14\sqrt{3}\approx 24 \geqslant 15.\quad\checkmark
\end{aligned}\]
A desigualdade triangular
Se lembre de GAAL que a soma de dois vetores \(\ul{u} + \ul{v}\) em \(\R^n\) pode ser visualizada por colocar um representante de \(\ul{v}\) começando no ponto final de um representante de \(\ul{u}\). O vetor \(\ul{u}+\ul{v}\) tem representante começando no ponto inicial de \(\ul{u}\) e indo pro ponto final de \(\ul{v}\):
A desigualdade triangular diz que o comprimento de \(\ul{u}+\ul{v}\) não pode ser maior do que a soma dos comprimentos de \(\ul{u}\) e \(\ul{v}\). De fato, esta desigualadae também vale em geral:
Proposição 47.5 Sejam \(\ul{u}, \ul{v}\) dois vetores num espaço vetorial com produto interno. Então \[\|\ul{u}+\ul{v}\| \leqslant \|\ul{u}\| + \|\ul{v}\|.\]
Comprovação.
\[\|\ul{u}+\ul{v}\|^2 \leqslant \left(\|\ul{u}\| + \|\ul{v}\|\right)^2.\] Temos
\[\begin{aligned}
\|\ul{u}+\ul{v}\|^2 & = \langle \ul{u}+\ul{v},\ul{u}+\ul{v}\rangle \\
& = \langle \ul{u},\ul{u}\rangle + 2\langle \ul{u},\ul{v}\rangle + \langle \ul{v},\ul{v}\rangle \\
& = \|\ul{u}\|^2 + 2\langle \ul{u},\ul{v}\rangle + \|\ul{v}\|^2 \\
& \leqslant \|\ul{u}\|^2 + 2\|\ul{u}\|\cdot\|\ul{v}\| + \|\ul{v}\|^2 \qquad (\hbox{Cauchy-Schwarz}) \\
& = \left(\|\ul{u}\| + \|\ul{v}\|\right)^2.\qquad\checkmark
\end{aligned}\]
◻
Mais uma definição. A distância entre dois vetores \(\ul{u}, \ul{v}\) do espaço vetorial com produto interno \(V\) é o número \(\|\ul{u} - \ul{v}\|\). Por exemplo, a distância entre um vetor \(\ul{u}\) e ele mesmo é \[\|\ul{u} - \ul{u}\| = \|\ul{0}\| = 0.\] A distância entre \(\ul{u}\) e \(-\ul{u}\) é \[\|\ul{u} - (-\ul{u})\| = \|2\ul{u}\| = 2\|\ul{u}\|.\]