55  Espaços vetoriais sobre corpos

55.1 A definição de um corpo

Um corpo é uma estrutura algébrica que permite realizar os passos da eliminação de Gauss-Jordan. A definição formal é a seguinte.

Definição 55.1 Seja \(\F\) um conjunto não vazio equipado com duas operações \(+\) (adição) e \(\cdot\) (multiplicação) que satisfazem as seguintes propriedades para todo \(a,b,c\in \F\):

  • \((a+b)+c=a+(b+c)\);
  • \(a+b=b+a\);
  • existe elemento neutro \(0\in \F\) para a adição: \(0+a=a+0=a\);
  • todo \(a\in F\) possui negativo; ou seja existe \(-a\in \F\) tal que \(a+(-a)=0\);
  • \((ab)c=a(bc)\);
  • \(ab=ba\);
  • existe elemento neutro \(1\in \F\setminus\{0\}\) para multiplicação: \(1\cdot a=a\cdot 1=a\);
  • para todo elemento \(a\in\F\setminus\{0\}\), existe inverso multiplicativo de \(a\), denotado por \(a^{-1}\) que satisfaz \(aa^{-1}=1\).
  • \(a(b+c)=ab+ac\).

A estrutura \((\F,+,\cdot)\) chama-se corpo.

Observe que na definição, nós assumimos que os elementos \(0\) e \(1\) de um corpo são diferentes. Assim, todo corpo tem pelo menos dois elementos, e de fato existe um corpo \(\{0,1\}\) com apenas estes dois elementos, onde as operações \(+\) e \(\cdot\) são feitas módulo \(2\).

55.2 Exemplos de corpos

Exemplo 55.1 Os seguintes exemplos são corpos.

  1. \(\Q\), \(\R\), \(\C\), \(\Z_p\) quando \(p\) é primo.
  2. Considere \[ \F=\{a+b\sqrt 2\mid a,b\in \Q\}. \] Afirmamos que \(\F\) é corpo. De fato, a maioria das propriedades na Definição 55.1, são triviais de verificar. A única propriedade que pode não ser imedatamente clara é que todo elemento não nulo tem inverso multiplicativo. De fato, considere \(a+b\sqrt 2\in\F\setminus\{0\}\) calcule \[ (a+b\sqrt 2)(a-b\sqrt 2)=a^2-2b^2. \] Como \(\sqrt 2\not\in\Q\), \(a^2-2b^2\neq 0\) quando \(a\neq 0\) e \(b\neq 0\). Logo, \[ (a+b\sqrt 2)\frac{a-b\sqrt 2}{a^2-2b^2}=1. \] Portanto, \[ (a+b\sqrt 2)^{-1}=\frac{a-b\sqrt 2}{a^2-2b^2}. \]
  3. Seja \(p\) um primo tal que \(-1\) não é quadrado módulo \(p\). Pode tomar, por exemplo \(p=3,7,11,\ldots\). De fato, pode-se verificar que \(p\) satisfaz esta propriedade se e somente se \(p\) é ímpar e \(p\equiv -1\pmod 4\). Seja \(i\) um símbolo tal que \(i^2=-1\in\Z_p\) e considere \[ \F=\{a+bi\mid a,b\in\Z_p\}. \] As operações em \(\F\) fazemos usando as regras naturais e usando também a regra que \(i^2=-1\). Ou seja, \[\begin{align*} (a+bi)+(c+di)&=a+c+(b+d)i;\\ (a+bi)\cdot(c+di)&=ac-bd+(ad+bc)i. \end{align*}\] Afirmamos que \(\F\) é um corpo. De fato, a única propriedade que precisa de verificação mais cuidadosa é que todo elemento não nulo tem inverso multiplicativo. De fato, seja \(a+bi\in\F\setminus\{0\}\). Temos que \[ (a+bi)(a-bi)=a^2+b^2. \] Como, \(-1\) não é quadrado em \(Z_p\), temos que \(a^2+b^2\neq 0\) e \[ (a+bi)\frac{a-bi}{a^2+b^2}=1. \] Logo, \[ (a+bi)^{-1}=\frac{a-bi}{a^2+b^2}. \]

Exemplo 55.2 Os seguintes não são corpos: \(\N\), \(\Z\), \(\Z_n\) quando \(n\) é composto \(\R[x]\) (anel de polinômios), etc.

55.3 Espaços vetoriais sobre corpos

Definição 55.2 Seja \(\F\) um corpo. Um espaço vetorial sobre \(\F\) é um conjunto \(V\) de elementos (chamados “vetores”) junto com as operações da soma (\(u, v\in V \implies u+v\in V\)) e do produto por escalar (\(u\in V, \lambda\in \F \implies \lambda u\in V\)). As operações têm que satisfazer as seguintes condições

  1. \((u+v)+w = u + (v + w)\quad \forall u, v, w\in V\) (“associatividade"),

  2. \(u + v = v + u\quad \forall u, v\in V\) (“commutatividade”),

  3. Existe um elemento \(0\in V\) tal que \[u + 0 = u\quad\forall u\in V.\]

  4. Para cada \(u\in V\), existe um elemento \(-u\in V\) tal que \[u + (-u) = 0,\]

  5. \(\lambda(u + v) = \lambda u + \lambda v\quad\forall \lambda\in \F, \forall u, v\in V\),

  6. \((\lambda + \mu)u = \lambda u + \mu u\quad\forall \lambda, \mu\in \F, \forall u\in V\),

  7. \((\lambda\mu)u = \lambda(\mu u)\quad\forall \lambda, \mu\in \F, \forall u\in V\),

  8. \(1\cdot u = u\quad \forall u\in V\).

Dados \(u, v\in V\), vamos denotar por \(u - v\) o elemento \(u + (-v)\). A partir dessas propriedades, podemos deduzir outras. Por exemplo:

Lema 55.1 \(0\cdot u = 0\,\,\,\forall u\in V\).

Comprovação. Temos \[0u + u \overset{P8}{=} 0u + 1u \overset{6}{=} (0+1)u = 1u \overset{8}{=} u.\qquad (*)\] Logo: \[0u \overset{3}{=} 0 u + 0 \overset{4}{=} 0u + u -u \overset{(*)}{=} u -u \overset{4}{=} 0.\]

Exemplo 55.3  

  • \(\F^n\) é um espaço vetorial \(\forall n\). Exercício: confirme que \(\F^n\) satisfaz as propriedades 1–8.

  • Quando \(n=1\) acima, obtemos que \(\F = \F^1\) é um espaço vetorial sobre \(\F\). As operações da soma e da multiplicação por escalar são simplesmente a soma e o produto de números em \(\F\): \[(a) + (b) = (a+b)\] \[\lambda(a) = (\lambda a).\]

  • O menor espaço vetorial de todos: \(\{0\}\) é um espaço vetorial. Temos somente um jeito de definir a soma e produto por escalar: \[0 + 0 = 0\] \[\lambda\cdot 0 = 0.\] Este espaço parece meio idiota, mas ele é muito importante.

  • Denote por \(M_{m,n}(\F)\) o conjunto das matrizes \(m\times n\) com entradas em \(\F\). Se lembre que podemos somar duas matrizes em \(M_{m,n}(\F)\): \[\hbox{Se }A = (a_{ij}), B = (b_{ij})\in M_{m,n}(\F)\hbox{ então } A+B = (a_{ij} + b_{ij}) \in M_{m,n}(\F).\] Também podemos multiplicar uma matriz por um escalar: \[\hbox{Se }A = (a_{ij})\in M_{m,n}(\F)\,,\,\lambda\in \F\hbox{ então } \lambda A = (\lambda a_{ij}) \in M_{m,n}(\F).\] De fato, com essas operações, \(M_{m,n}(\F)\) é um espaço vetorial. Confirmo, por exemplo, que satisfaz Propriedade 3. A matriz \(0\) será a matriz cujas entradas são todas \(0\): \[0 = \begin{pmatrix} 0 & \cdots & 0 \\ \vdots & \ddots & \vdots\\ 0 & \cdots & 0 \end{pmatrix}.\] Para qualquer matriz \(A = (a_{ij})\) a gente tem \[A + 0 = (a_{ij}) + (0) = (a_{ij} + 0) = (a_{ij}) = A.\quad\checkmark\] Exercício: confirme que mais algumas das propriedades valem.

    Os espaços \(M_{1,n}(\F)\) e \(M_{n,1}(\F)\) são os espaços de vetores linhas e de vetores colunas, respetivamente, de comprimento \(n\) sobre \(\F\). Estes espaços serão identificados com \(\F^n\).

  • Um exemplo menos óbvio. Seja \(X\) um conjunto qualquer e considere o conjunto das funções (= aplicações) de \(X\) a \(\F\): \[\mathcal{F}(X, \F) = \{ f : X\to \F\hbox{ uma função}\}.\] Podemos definir a soma de duas funções: Dadas funções \(f,g : X\to \F\), definimos uma função nova \((f+g) : X\to \F\) como \[(f+g)(x) := f(x) + g(x).\] Também podemos definir o produto por escalar de uma função \(f\) pelo escalar \(\lambda\) assim: \[(\lambda f)(x) := \lambda\cdot f(x).\] Com essas operações, \(\mathcal{F}(X, \F)\) é um espaço vetorial. Vamos confirmar umas propriedades:

    • Dadas funções \(f,g:X\to \F\), queremos confirmar que as funções \(f+g\) e \(g+f\) são iguais. Para fazer isso, temos que confirmar que \((f+g)(x) = (g+f)(x)\) para todo \(x\in X\). Mas isso é fácil: \[(f+g)(x) = f(x) + g(x) = g(x) + f(x) = (g+f)(x).\]

    • A função \(0\in \mathcal{F}(X,\F)\) será a função que leva todo \(x\in X\) pro elemento \(0\in \F\). Ou seja, \(0(x) := 0\,\forall x\in X\). Temos que confirmar que \(f+0 = f\), logo temos que confirmar que \((f+0)(x) = f(x)\,\forall x\in X\). Mas \[(f+0)(x) = f(x) + 0(x) = f(x) + 0 = f(x).\]

    Exercício: Defina a função “\(-f\)” e confirme que as outras propriedades valem. \(0(x) := 0\,\forall x\in X\). Temos que confirmar que \(f+0 = f\), logo temos que confirmar que \((f+0)(x) = f(x)\,\forall x\in X\). Mas \[(f+0)(x) = f(x) + 0(x) = f(x) + 0 = f(x).\]

    Exercício: Defina a função “\(-f\)” e confirme que as outras propriedades valem.