36  O Lema de Gauss e o Critério de Eisenstein

36.1 O Lema de Gauss

Polinômios irredutíveis têm descrição muito simples em \(\C[x]\) e em \(\R[x]\). A situação é bem mais complicada em \(\Q[x]\). Assuma que \(f(x)\in\Q[x]\). Então \(f(x)\) pode ser escrito como \[ f(x)=\frac{a_n}{b_n} x^n+\cdots +\frac{a_1}{b_1}x+\frac{a_0}{b_0} \] onde \(a_i,b_j\in\Z\). Multiplicando \(f(x)\) por um múltiplo comum dos denominadores, obtemos um polinômio \[ f_1(x)=c_nx^n+\cdots+c_1x+c_0\in\Z[x]. \] Além disso, como \(f_1(x)\) foi obtido como um múltiplo de \(f(x)\) por um constante não nulo, temos que \(f(x)\) é irredutível em \(\Q[x]\) se e somente se \(f_1(x)\) é irredutível em \(\Q[x]\). Portanto, quando consideramos a questão da irredutibilidade de um polinômio \(f(x)\in\Q[x]\), podemos assumir sem perder a generalidade que \(f(x)\in\Z[x]\).

Dados \(a_1,\ldots,a_k\in\Z\) não simultaneamente zero com \(k\geq 2\), então o MDC dos números \(a_i\) é definido como o número \(d\) que satisfaz as propriedades que

  • \(d\geq 0\);
  • \(d\mid a_i\) para todo \(i\in\{1,\ldots,k\}\);
  • Se \(c\in\Z\) tal que \(c\mid a_i\) para todo \(i\), então \(c\mid d\).

Pode-se monstrar como no caso do \(\mdc ab\) que o MDC de \(a_1,\ldots,a_k\) existe unicamente e assim pode ser escrito como \(\mbox{mdc}(a_1,\ldots,a_k)\). Além disso, para \(k\geq 3\), vale que \[ \mbox{mdc}(a_1,\ldots,a_k)=\mbox{mdc}(\mbox{mdc}(a_1,\ldots,a_{k-1}),a_k). \]

O \(\mbox{mmc}(a_1,\ldots,a_k)\) pode ser definido de modo análogo.

Definição 36.1 Seja \(f(x)=a_nx^n+\cdots+a_1x+a_0\in\Z[x]\setminus\{0\}\). O conteúdo de \(f(x)\) é definido como \(\mbox{mdc}(a_n,\ldots,a_1,a_0)\). O polinômio \(f(x)\) é dito primitivo se seu conteúdo é igual a \(1\)

Exemplo 36.1 O conteúdo do polinômio \(2x^2+4x-2\in\Z[x]\) é \(2\), então ele não é primitivo. O conteúdo do polinômio \(2x^3-4x^2-1\in\Z[x]\) é \(1\), então ele é primitivo

Se \(f(x)\in\Z[x]\) e \(\alpha\in\Z\) é seu conteúdo, então \(f(x)=\alpha f_0(x)\) onde \(f_0(x)\in\Z[x]\) é um polinômio primitivo. Por exemplo, \(2x^2+4x-2=2(x^2+2x-1)\) onde \(x^2+2x-1\) é primitivo.

Definição 36.2 Seja \[ f(x)=a_nx^n+\cdots+a_1x+a_0\in\Z[x] \] e \(p\in\N\) um primo. Definimos a redução \(\overline{f(x)}\) de \(f(x)\) módulo \(p\) como o polinômio \[ \overline{f(x)}=\overline{a_n}x^n+\cdots+\overline{a_1}x+\overline{a_0}\in\Z_p[x] \] onde \(\overline{a_i}\in\Z_p\) é a classe residual que contém \(a_i\)

Exemplo 36.2 A redução do polinômio \(10x^2+7x-3\) módulo \(5\) é \(\overline 2x+\overline 2\in\Z_5[x]\). Note que a redução de um polinômio \(a_nx^n+\cdots+a_1x+a_0\) módulo \(p\) é \(0\) se e somente se \(p\mid a_i\) para todo \(i\)

Exercício 36.1 Sejam \(f(x),g(x)\in\Z[x]\) e \(p\) um primo. Mostre para os polinômios reduzidos módulo \(p\) que \[\begin{align*} \overline{f(x)+g(x)}&=\overline{f(x)}+\overline{g(x)}\\ \overline{f(x)g(x)}&=\overline{f(x)}\cdot\overline{g(x)}\\ \end{align*}\]

Exercício 36.2 Seja \(f(x)\in\Z[x]\) um polinômio primitivo e redutível (em \(\Z[x]\)) e seja \(p\) um primo. Assuma que a redução \(\overline{f(x)}\) módulo \(p\) tem o mesmo grau que \(f(x)\). Mostre que \(\overline{f(x)}\) é redutível em \(\Z_p[x]\)

Lema 36.1 Sejam \(f(x),g(x)\in\Z[x]\) polinômios primitivos. Então \(f(x)g(x)\) é primitivo

Comprovação. Seja \(h(x)=f(x)g(x)\) e assuma que \(h(x)\) não é primitivo. Então existe um primo \(p\) tal que \(p\) divide todos os coeficientes de \(h(x)\). Sejam \(\overline{f(x)}\), \(\overline{g(x)}\), \(\overline{h(x)}\) as reduções de \(f(x)\), \(g(x)\) e \(h(x)\), respetivamente, módulo \(p\). A frase anterior implica que \(\overline{h(x)}=0\) e segue do exercício anterior que \[ 0=\overline{h(x)}=\overline{f(x)}\cdot \overline{g(x)}\in\Z_p[x]. \] Como \(\Z_p[x]\) é um domínio, temos que \(\overline{f(x)}=0\) ou \(\overline{g(x)}=0\); ou seja \(p\) divide os coeficientes de \(f(x)\) ou \(p\) divide os coeficientes de \(g(x)\). Mas isso implica que \(f(x)\) não é primitivo ou \(g(x)\) não é primitivo que contradiz às suposições do lema

Dado um polinômio primitivo \(f(x)\in\Z[x]\), nos perguntamos se \(f(x)\) é redutível em \(\Q[x]\) ou em \(\Z[x]\). Se \(f(x)\) é redutível em \(\Z[x]\), então ele é claramente redutível em \(\Q[x]\). O caso contrário não é tão óbvio, mas segue do seguinte resultado conhecido como o Lema de Gauss.

Teorema 36.1 (Lema de Gauss) Seja \(f(x)\in\Z[x]\) um polinômio redutível em \(\Q[x]\). Então \(f(x)\) é redutível em \(\Z[x]\)

Comprovação. Dividir \(f(x)\) com seu conteúdo não altera a redutibilidade do polinômio em \(\Q[x]\) e assim nós podemos assumir sem perder generalidade que \(f(x)\) é primitivo. Assuma que \(f(x)\) é redutível em \(\Q[x]\) e pode ser fatorado como \[ f(x)=g(x)h(x) \] onde \(g(x),h(x)\in\Q[x]\) e \(1\leq \grau{g(x)},\grau{h(x)}\leq \grau{f(x)}-1\). Precisamos provar que \(f(x)\) pode ser fatorado como produto de polinômios em \(\Z[x]\). Seja \[\begin{align*} g(x)&=\frac{u_n}{v_n}x^n+\cdots+\frac{u_1}{v_1}x+\frac{u_0}{v_0}\\ h(x)&=\frac{a_m}{b_m}x^m+\cdots+\frac{a_1}{b_1}x+\frac{a_0}{b_0} \end{align*}\] onde os \(u_i\), \(v_i\), \(a_i\), \(b_i\) são inteiros. Ponha \(v=\mbox{mmc}(v_n,\ldots,v_0)\) e \(b=\mbox{mmc}(b_m,\ldots,b_0)\) e multiplique a equação \(f(x)=g(x)h(x)\) com \(vb\) para obter que \[ vbf(x)=(vg(x))(bh(x)). \] Observe que \(vbf(x), vg(x), bh(x)\in\Z[x]\). Sejam \(c_1\) e \(c_2\) os conteúdos de \(vg(x)\) e \(bh(x)\), respetivamente. Então \[\begin{align*} vg(x)&=c_1g_0(x)\\ bh(x)&=c_2h_0(x) \end{align*}\] onde \(g_0(x),h_0(x)\) são polinômios primitivos. Assim, \[ vbf(x)=(vg(x))(bh(x))=(c_1g_0(x))(c_2h_0(x))=c_1c_2g_0(x)h_0(x). \] Como \(f(x)\) é primitivo, o conteúdo de \(vbf(x)\) é \(vb\). Por outro lado, o lema anterior implica que \(g_0(x)h_0(x)\) é primitivo, então o conteúdo do lado direito é \(c_1c_2\). Como os dois lados da equação são (obviamente) iguais, temos que \(vb=c_1c_2\) e este termo pode ser cancelado. Assim \[ f(x)=g_0(x)h_0(x) \] é uma fatoração de \(f(x)\) com \(g_0(x),h_0(x)\in\Z[x]\) e \(\grau{g_0(x)}=\grau{g(x)}\) e \(\grau{h_0(x)}=\grau{h(x)}\). Assim \(f(x)\) é redutível em \(\Z[x]\)

O significado do lema do Gauss é o seguinte: Se \(f(x)\in\Z[x]\) pode ser fatorado como produto de polinômios \(g(x),h(x)\in\Q[x]\) com grau maior ou igual que \(1\), então o mesmo pode ser fatorado como produto de polinômios \(g_0(x),h_0(x)\in\Z[x]\) onde \(\grau{g_0(x)}=\grau{g(x)}\) e \(\grau{h_0(x)}=\grau{h(x)}\).

Exemplo 36.3 Seja \(f(x)=x^4+x^2+x+1\in\Z[x]\) e vamos mostrar que \(f(x)\) é irredutível em \(\Q[x]\). Pelo Teorema das Raízes Racionais, \(f(x)\) não tem raízes em \(\Q\). Logo, se \(f(x)\) fosse redutível, \(f(x)=g(x)h(x)\) onde \(g(x),h(x)\in\Q[x]\) ambos de grau \(2\). Ora, o Lema de Gauss diz que nós podemos assumir sem perder generalidade que \(g(x),h(x)\in\Z[x]\). Assim \(f(x)\) pode ser fatorado como \[\begin{align*} f(x)&=(x^2+ax+b)(x^2+cx+d)\\&=x^4+(a+c)x^3+(d+b+ac)x^2+(ad+bc)x+bd \end{align*}\] onde \(a,b,c,d\in\Z\). Comparando os coeficientes de \(f(x)\) com os coeficientes do polinômio na última equação, obtemos que \(a+c=0\) e \(bd=1\). Assim, \(b=d=1\) ou \(b=d=-1\) e \(1=ad+bc=\pm(a+c)\) que contradiz à equação que \(a+c=0\). Portanto, tal fatoração não existe e \(f(x)\) é irredutível

36.2 O critério de Eisenstein

Teorema 36.2 (O Critério de Eisenstein) Seja \[ f(x)=a_nx^n+\cdots+a_1x+a_0\in\Z[x] \] com \(a_n\neq 0\) tal que existe um primo \(p\) tal que \(p\nmid a_n\), \(p\mid a_i\) para todo \(i\in\{0,\ldots,n-1\}\) e \(p^2\nmid a_0\). Então \(f(x)\) é irredutível em \(\Q[x]\)

Comprovação. Assuma por procurar uma contradição que \(f(x)\) é redutível em \(\Q[x]\). Pelo Lema de Gauss, existem \(g(x),h(x)\in\Z[x]\) tal que \(f(x)=g(x)h(x)\) tais que \(1\leq \grau{g(x)},\grau{h(x)}\leq\grau{f(x)}-1\). Assuma que \[\begin{align*} g(x)&=b_rx^r+\cdots +b_1x+b_0\\ h(x)&=c_sx^s+\cdots +c_1x+c_0 \end{align*}\] com \(b_r,c_s\neq 0\), \(r,s\geq 1\) e \(r+s=n\). Temos que \(a_n=b_rc_s\) e \(a_0=b_0c_0\). Como \(p\nmid a_n\), temos que \(p\nmid b_r\) e \(p\nmid c_s\). Similarmente, como \(p\mid a_0\) e \(p^2\nmid a_0\), segue que \(p\mid b_0\) ou \(p\mid c_0\) mas \(p\) não divide ambos \(b_0\) e \(c_0\). Assuma sem perder generalidade que \(b\mid b_0\) e \(p\nmid c_0\). Seja \(t\) o menor índice tal que \(p\nmid b_t\). Então \(t\leq r < n\). O coeficiente \(a_t\) é obtido como \[ a_t=b_tc_0+b_{t-1}c_1+\cdots+b_1c_{t-1}+b_0c_t \] (se \(\grau{h(x)} < t\), então tomamos \(c_{s+1}=\cdots=c_t=0\)). Pelas condições do lema, \(p\mid a_t\) e isso implica que \(p\mid b_tc_0\) mas isso é impossível como \(p\nmid b_t\) e \(p\nmid c_0\). Logo a fatoração \(f(x)=g(x)h(x)\) não existe e assim \(f(x)\) é irredutível

Exemplo 36.4 Seja \(f(x)=x^n-p\in\Z[x]\) onde \(p\) é um primo e \(n\geq 1\). O critério de Eisenstein vale para \(f(x)\) e assim \(f(x)\) é irredutível. Em particular \(\Q[x]\) possui polinômios irredutíveis de grau arbitrário

Exemplo 36.5 Seja \(p\in\N\) um primo e considere \[ f(x)=x^{p-1}+x^{p-2}+\cdots+x+1\in\Z[x]. \] O polinômio \(f(x)\) é chamado polinômio ciclotómico de grau \(p\). Note que \[ f(x)=\frac{x^p-1}{x-1}. \] Afirmamos que \(f(x)\) é irredutível em \(\Q[x]\). O Critério de Eisenstein não é diretamente aplicável e nós vamos fazer uma substituição de variável \(y=x+1\). Assim \[\begin{align*} f(y)&=\frac{y^p-1}{y-1}=\frac{(x+1)^p-1}{(x+1)-1}\\ &=\frac{x^p+p x^{p-1}+\binom p2x^{p-2}+\cdots+\binom p{p-2}x^2+px+1-1}{x}\\&= x^{p-1}+p x^{p-2}+\binom p2x^{p-3}+\cdots+\binom p{p-2}x+p. \end{align*}\] O coeficiente binomial \(\binom pk\) é divisível por \(p\) para todo \(k\in\{1,\ldots,p-1\}\). Pelo Critério de Eisentein, \(f(y)\) é irredutível. Como \(x=y-1\), temos que \(f(x)=f(y-1)\) é também irredutível