71  Anéis e corpos

71.1 Definições

Definição 71.1 Seja \(R\) um conjunto não vazio equipado com duas operações \(+\) (adição) e \(\cdot\) (multiplicação) que satisfazem as seguintes propriedades para todo \(a,b,c\in R\):

  • \((a+b)+c=a+(b+c)\);
  • \(a+b=b+a\);
  • existe elemento neutro \(0\) para a adição: \(0+a=a+0=a\);
  • \(a\in R\) possui negativo; ou seja existe \(-a\in R\) tal que \(a+(-a)=0\);
  • \((ab)c=a(bc)\);
  • \(ab=ba\);
  • existe elemento neutro \(1\) para multiplicação: \(1\cdot a=a\cdot 1=a\);
  • \(a(b+c)=ab+ac\).

A estrutura \((R,+,\cdot)\) chama-se anel comutativo com identidade. Como nesta parte da disciplina nós não vamos tratar anéis que não são comutativos com identidade, nós vamos chamar a estrutura \(R\) simplesmente anel.

Em particular, se \((R,+,\cdot)\) é um anel então \((R,+)\) é  um grupo abeliano.

Definição 71.2 Um anel \(R\) com pelo menos dois elementos é dito corpo, se, além das propriedades 1-8 acima, todo elemento \(a\in R\setminus\{0\}\) possui inverso multiplicativo. Ou seja, se \(a\in R\setminus\{0\}\), então existe \(a^{-1}\in R\) tal que \(aa^{-1}=1\). Isto significa, que se \((R,+,\cdot)\) é um corpo, então \((R,+)\) e \((R\setminus\{0\},\cdot)\) são grupos abelianos.

Exercício 71.1 Mostre em um anel \(R\) que os elementos \(0\) e \(1\) são únicos. Mostre, para \(a\in R\) que \(-a\) e (caso exista) \(a^{-1}\) são únicos.

Exemplo 71.1 Os principais exemplos de anéis são \(\mathbb Z\), \(\mathbb Z_n\) e \(\F[x]\) (com \(\F\) sendo um corpo). Os principais exemplos de corpos são \(\mathbb Z_p\) (com \(p\) primo), \(\mathbb Q\), \(\mathbb R\), e \(\mathbb C\).

71.2 Ideais

Definição 71.3 Um conjunto não vazio \(I\) de um anel é dito ideal se

  • \(a\pm b\in I\) para todo \(a,b\in I\) (em outras palavras \(I\) é um subgrupo de \((R,+)\));
  • \(ab\in I\) para todo \(a\in I\) e \(b\in R\).

Exemplo 71.2 Se \(R\) é um anel e \(a\in R\), então \[ (a)=Ra=\{ba\mid b\in R\} \] é um ideal de \(R\). Um ideal desta forma chama-se ideal principal.

Exercício 71.2 Usando a notação do parágrafo anterior, mostre que \((a)=R\) se e somente se existe \(a^{-1}\in R\).

Definição 71.4 Se \(R\) é um anel e \(I\) é um ideal, então o quociente \[ R/I=\{I+r\mid r\in R\} \] pode ser considerado como um anel com as operações \[ (I+a)+(I+b)=I+(a+b),\quad (I+a)(I+b)=I+ab. \]

Exemplo 71.3 Caso \(R=\mathbb Z\) e \(n\in \mathbb Z\), o ideal principal \((n)\) é o conjunto \(\{bn\mid b\in\mathbb Z\}\) dos múltiplos de \(n\). Se \(n\geq 2\), então o quociente \(\mathbb Z/(n)\) é o anel \(\mathbb Z_n\) das classes residuais.

71.3 Anéis de polinômios

Nós vamos trabalhar principalmente com anéis de polinômios e com seus ideais. Eu assumo que vocês têm familiaridade com alguns conceitos relacionados com polinômios que estudamos na disciplina Fundamentos de Álgebra:

Seja \(\F\) um corpo e considere o anel \(R=\F[x]\) de polinômios sobre \(\F\). Seja \(f(x)\) um polinômio de \(\F[x]\) com grau maior ou igual a \(1\). Pelo exemplo acima,  o conjunto \[ (f(x))=\F[x]f(x)=\{q(x)f(x)\mid q(x)\in \F[x]\} \] é um ideal de \(\F[x]\). Se \(g(x)\in \F[x]\) então denote por \(\overline{g(x)}\) o elemento \((f(x))+g(x)\) do quociente \(\F[x]/(f(x))\). Usando o Teorema de Divisão de Euclides para polinômios, pode-se escrever que \[ g(x)=q(x)f(x)+r(x)\quad \mbox{onde}\quad r(x)=0\mbox{ ou }\mbox{grau}\,r(x)<\mbox{grau}\,f(x), \] mas isso implica que \[ \overline{r(x)}=\overline{g(x)-q(x)f(x)}=\overline{g(x)}-\overline{q(x)}\overline{f(x)}= \overline{g(x)}. \] Ou seja, \(\overline{g(x)}\) e \(\overline{r(x)}\) são elementos iguais em \(\F[x]/(f(x))\). Além disso, se \(\mbox{grau}\,g(x)<\mbox{grau}\,f(x)\), então a penúltima equação destacada implica que \(g(x)=r(x)\). Estas considerações demonstram o seguinte resultado.

Lema 71.1 Usando a notação acima, todo elemento de \(\F[x]/(f(x))\) pode ser escrito unicamente como \(\overline{g(x)}\) onde \(g(x)\in\F[x]\) com \(g(x)=0\) ou \(\mbox{grau}\,g(x)<\mbox{grau}\,f(x)\). Em particular, pondo \(k=\mbox{grau}\,f(x)\), \[ \F[x]/(f(x))=\{\overline{g(x)}\mid g(x)=0\mbox{ ou grau}\,g(x)<k\}= \{\alpha_0+\alpha_1\overline x+\cdots+\alpha_{k-1}\overline x^{k-1}\mid \alpha_0,\ldots,\alpha_{k-1}\in\F\}. \] e \(\F[x]/(f(x))\) é um espaço vetorial de dimensão \(k\) sobre \(\F\).

Definição 71.5 Um ideal \(I\unlhd\) R$ é dito maximal se não existe ideal \(J\) de \(R\) tal que tal \(I\subset J\subset R\).

Teorema 71.1 Se \(I\neq\{0\}\) é um ideal de \(\F[x]\) então existe um único polinômio mônico \(f(x)\in I\) tal que \[ I=(f(x))=\F[x]f(x)=\{q(x)f(x)\mid q(x)\in \F[x]\}. \] Consequentemente, \(I\) é principal. Além disso as seguintes são equivalentes:

  • \(I\) é um ideal maximal;
  • \(f(x)\) é um polinômio irredutível;
  • \(\F[x]/I\) é um corpo.

Comprovação. Seja \(I\subseteq \F[x]\) um ideal não nulo e seja \(f(x)\) um polinômio não nulo em \(I\) de grau minimal. Multiplicando \(f(x)\) com um escalar, podemos assumir que \(f(x)\) é um polinômio mônico. Claramente, \((f(x))\subseteq I\). Seja \(g(x)\in I\) um polinômio arbitrário. Pelo Teorema de Divisão de Euclides para polinômios, existem \(q(x),r(x)\in\F[x]\) únicos tais que \[ g(x)=f(x)q(x)+r(x)\quad \mbox{onde}\quad r(x)=0\mbox{ ou }\mbox{grau}\,r(x)<\mbox{grau}\,f(x). \] Como \(f(x),g(x)\in I\), vimos que \(r(x)\in I\). Pela minimalidade de \(\mbox{grau}\,f(x)\) entre os polinômios não nulos de \(I\), segue obrigatoriamente que \(r(x)=0\). Ou seja \(g(x)=f(x)q(x)\). Isto mostra que \(I\subseteq (f(x))\) e portanto \(I=(f(x))\).

Para a primeira afirmação, precisamos mostrar ainda que \(f(x)\) é único. Suponha que existem \(f_1(x),f_2(x)\in I\) ambos mônicos tais que \(I=(f_1(x))=(f_2(x))\). Neste caso \(f_1(x)\) é um múltiplo de \(f_2(x)\) e \(f_2(x)\) é um múltiplo de \(f_1(x)\). Como os dois destes polinômios são mônicos, segue que \(f_1(x)=f_2(x)\). Então o polinômio \(f(x)\) no lema é único.

Mostremos agora que as três afirmações no lema são equivalentes. Assuma que \(I\) é maximal. Como \(I\neq\F[x]\), temos que \(f(x)\) não é invertível; ou seja \(\mbox{grau}\,f(x)\geq 1\). Escreva \(f(x)=g(x)h(x)\) com \(g(x),h(x)\in\F[x]\) e \(\mbox{grau}\,g(x)<\mbox{grau}\,f(x)\). Observe que \(I=(f(x))\subseteq (g(x))\). Pela maximalidade de \(I=(f(x))\), tem-se que \((g(x))=\F[x]\) ou \((g(x))=I\). A segunda opção não é possível pois \(f(x)\) é um polinômio de menor grau em \(I\), enquanto na primeira opção \(g(x)\) é constante. Obtivemos que \(f(x)\) é irredutível.

Assuma agora que \(f(x)\) é irredutível. Seja \(g(x)\in \F[x]\) tal que \(\overline{g(x)}=g(x)+I\in \F[x]/I\) é um elemento não nulo; ou seja \(g(x)\not\in I\), ou, equivalentemente, \(f(x)\nmid g(x)\). Como \(f(x)\) é irredutível, temos que \(\mbox{mdc}(f(x),g(x))=1\) e existem (pelo Algoritmo de Euclides) \(u(x),v(x)\in\F[x]\) tais que \[ u(x)f(x)+v(x)g(x)=1. \] Passando para o quociente, isto quer dizer que \[ \overline 1=\overline{u(x)f(x)+v(x)g(x)}=\overline{u(x)}\overline{f(x)}+\overline{v(x)}\overline{g(x)}= \overline{v(x)}\overline{g(x)}. \] Ou seja, \(\overline{v(x)}\) é inverso de \(\overline{g(x)}\). Como \(g(x)\) foi escolhido arbitrariamente, sujeito à condição que \(\overline{g(x)}\neq 0\), temos que todo elemento não nulo de \(\F[x]/I\) possui inverso e que \(\F[x]/I\) é um corpo.

Assuma agora que \(\F[x]/I\) é um corpo e seja \(J\) um ideal de \(\F[x]\) tal que \(I\subset J\). Seja \(g(x)\in J\setminus I\). Como \(\F[x]/I\) é um corpo, \(\overline{g(x)}\) possui inverso em \(\F[x]/I\); ou seja, existe \(h(x)\in \F[x]\) tal que \(\overline{g(x)}\overline{h(x)}=\overline 1\), mas isto é equivalente ao afirmar que \(g(x)h(x)=1+q(x)f(x)\). Como \(g(x),f(x)\in J\), temos que \(1\in J\) e isto implica que \(J=\F[x]\) e que \(I\) é um ideal maximal.

Exemplo 71.4 Seja \(\F=\mathbb R\) e considere o polinômio \(f(x)=x^2+1\in\mathbb R[x]\). Como \(f(x)\) é um polinômio irredutível (porque?), temos que o quociente \(\mathbb K=\mathbb R[x]/(x^2+1)\) é um corpo. Pelas considerações acima, \[ \mathbb K=\{\alpha_0+\alpha_1\overline x\mid \alpha_0,\alpha_1\in \mathbb R\}. \] Além disso, temos que \(\overline x^2+1=0\) que implica que \(\overline x^2=-1\). Escrevendo \(\overline x=i\), temos que \[ \mathbb K=\{\alpha_0+\alpha_1 i\mid \alpha_0,\alpha_1\in\mathbb R\}\quad\mbox{onde}\quad i^2=-1. \] Vemos então que o corpo quociente \(\mathbb K\) é nada mais que o corpo bem conhecido \(\mathbb C\). Obtivemos então que \(\mathbb C=\mathbb R[x]/(x^2+1)\).