65  Autovalores e autovetores

Exemplo 65.1 Considere a transformação \(R:\R^2\to \R^2\) onde \(R(v)\) é a reflexão de \(v\) no eixo que tem \(30\) graus com o eixo-\(x\). A matriz da transformação na base canônica é \[ \begin{pmatrix} 1/2 & \sqrt{3}/2\\ \sqrt{3}/2 & -1/2 \end{pmatrix}. \] Ou seja, esta é uma matriz complicada. Por outro lado, se usarmos a base que contém o eixo da reflexão e uma outro vetor perpendicular ao eixo, temos que a matriz da transformação fica na forma \[ \begin{pmatrix} 1 & 0\\ 0 & -1 \end{pmatrix}. \]

Escolhendo os vetores na maneira “certa”, a matriz da transformação fica bem mais simples. Nesta parte da disciplina nós vamos estudar

Definição 65.1 Seja \(f:V\to V\) um endomorfismo de um \(\F\)-espaço vetorial \(V\). Seja \(\lambda\in\F\). Se \(v\in V\) tal que \(f(v)=\lambda v\), então \(v\) chama-se autovetor de \(f\). Se \(v\neq 0\), então \(\lambda\) chama-se autovalor de \(\F\). Nós escrevemos \[ V_\lambda=\{v\in V\mid f(v)=\lambda v\}. \] O espaço \(V_\lambda\) chama-se autoespaço de \(f\) associado com o autovalor \(\lambda\). Note que \(0\in V_\lambda\) vale para todo \(\lambda\). Temos que \(\lambda\) é autovalor de \(f\) se e somente se \(V_\lambda\neq 0\).

Exercício 65.1 Mostre que \(V_\lambda\leq V\). Sejam \(\lambda_1,\ldots,\lambda_k\in\F\) distintos. Mostre que \[ V_{\lambda_1}+\cdots+V_{\lambda_k}=V_{\lambda_1}\oplus\cdots\oplus V_{\lambda_k}. \]

Exemplo 65.2 Considere os seguintes exemplos.

  1. No Exemplo 65.1, o eixo da reflexão é um autovetor com autovalor \(1\) enquanto um vetor perpendicular ao eixo é autovetor com autovalor \(-1\).
  2. Se \(f:C^\infty(\R)\to C^\infty(\R)\) é a derivação (\(C^\infty(\R)\) sendo o espaço de funções reais infinitamente deriváveis), então a função \(x\mapsto \exp(\lambda x)\) é autovetor com autovalor \(\lambda\).
  3. Se \(f:V\to V\) é um endomorfismo, então \(V_0=\ker f\).

Definição 65.2 Um endomorfismo \(f:V\to V\) de um espaço vetorial \(V\) de dimensão finita é chamada diagonalizável se \(V\) possui uma base formada por autovetores de \(f\).

O endomorfismo no primeiro exemplo é diagonalizável.

Se \(V\) é um espaço de dimensão finita e \(f:V\to V\) é um endomorfismo, o determinante de \(f\) pode ser definido como na Definição 63.3. Na prática, nós calculamos \(\det f\) como o determinante \(\det [f]^B_B\) da matriz de \(f\) em uma base \(B\) de \(V\). Pelas regras da mudança de base (Lema 60.2), \(\det f\) é independente da escolha de \(B\).

Lema 65.1 Seja \(f:V\to V\) um endomorfismo e \(\lambda\in\F\). As seguintes afirmações são verdadeiras:

  1. \(V_\lambda=\ker(\lambda\cdot \mbox{id}_V-f)\).
  2. Assumindo que \(\dim V\) é finita, \(\lambda\) é autovalor de \(f\) se e somente se \(\det(\lambda\cdot \mbox{id}_V-f)=0\).

Comprovação.

  1. Seja \(v\in V\). Então \(f(v)=\lambda v\) se e somente se \(\lambda v-f(v)=0\) que é e mesma coisa que \(\lambda\mbox{id}_V(v)-f(v)=0\). A última equação pode ser escrita na forma \((\lambda\mbox{id}_V-f)(v)=0\); ou seja, \(v\in \ker (\lambda\cdot \mbox{id}_V-f)\).

  2. \(\lambda\) é autovalor de \(f\) se e somente se \(V_\lambda\neq 0\) que equivale à afirmação \(\ker(\lambda\mbox{id}_V-f)\neq 0\); ou seja \(\lambda\mbox{id}_V-f\) não é invertível, ou equivalentemente, \(\det(\lambda\mbox{id}_V-f)=0\).

Exemplo 65.3 Seja \(f:\F^2\to \F^2\) definida por \(f(x,y)=(x+y,y)\). A matriz de \(f\) na base canônica é \[ \begin{pmatrix} 1 & 1 \\ 0 & 1 \end{pmatrix} \] Se \(\lambda\in\F\), então \(\lambda\) é autovalor de \(f\) se e somente se \[ 0=\det\begin{pmatrix} \lambda-1 & -1 \\ 0 & \lambda-1 \end{pmatrix}=(\lambda-1)^2. \] Obtemos que \(\det(\lambda\mbox{id}_V-f)=0\) apenas para \(\lambda=1\). Então o único autovalor de \(f\) é \(\lambda=1\). Neste caso, o autoespaço \(V_1\) coincide com o núcleo da matriz \[ \begin{pmatrix} 0 & -1 \\ 0 & 0 \end{pmatrix} \] que é \(\langle(1,0)^t\rangle\). Obtemos que os autovetores de \(f\) são os múltiplos de \((1,0)^t\), então não existe base de \(V\) tal que a matriz desta transformação seja diagonalizável. Ou seja, \(f\) não é diagonalizável.

Definição 65.3 Seja \(V\) um \(\F\)-espaço de dimensão finita e seja \(f:V\to V\) um endomorfismo. Seja \(t\) uma incôgnita sobre o corpo \(\F\). Então o determinante \(\det(t\cdot \mbox{id}_V-f)\) pode ser visto como um polinômio em \(\F[t]\). Este polinômio chama-se o polinômio caraterístico de \(f\) e está escrito como \(\mbox{pcar}_f(t)\).

Note que para calcular o polinômio caraterístico, precisa-se escolher uma base de \(V\), mas o resultado será independente da escolha da base (por Lema 60.2).

Exemplo 65.4 No Exemplo 65.3, \(\mbox{pcar}_f(t)=(t-1)^2\).

O polinômio caraterístico é um polinômio mônico de grau \(n=\dim V\): \[ \mbox{pcar}_f(t)=t^n+\alpha_{n-1}t^{n-1}+\cdots+\alpha_1t+\alpha_0\in\F[t]. \]

Corolário 65.1 Seja \(V\) um espaço vetorial de dimensão \(n\) (finita) sobre um corpo \(\F\) e seja \(f:V\to V\) um endomorfismo.

  1. O conjunto dos autovalores de \(f:V\to V\) é igual ao conjunto das raízes do seu polinômio caraterístico.
  2. \(f\) possui no máximo \(n\) autovalores distintos.
  3. Se \(\F=\C\), então \(f\) possui pelo menos um autovalor.

Comprovação.

  1. Segue do Lema 65.1 e da Definição 65.3.
  2. Segue do fato que o polinômio caraterística tem grau igual à \(\dim V=n\) e um polinômio de grau \(n\) em \(\F[x]\) pode ter no máximo \(n\) raízes distintas (Corolário 32.1).
  3. Se \(\F=\C\), então o Teorema Fundamental da Álgebra diz que todo polinômio de grau maior ou igual a um tem raíz complexa (Teorema 32.1). Esta raiz é autovalor de \(f\).

Definição 65.4 O conjunto dos autovalores de \(f\) chama-se o espectro de \(f\). A multiplicidade algébrica de um autovalor \(\lambda\) é a multiplicidade como raiz de \(\mbox{pcar}_f(t)\). A multiplicidade geométrica é \(\dim V_\lambda\).

Lema 65.2 A multiplicidade geométrica de um autovalor de um endomorfismo é menor ou igual a sua multiplicidade algébrica.

Comprovação. Exercício: Use uma base que contém uma base para \(V_\lambda\) para calcular o polinômio caraterístico.