26  n

Seja \(n\in\N\) um número natural e seja \(a\in\Z\). Nós definimos em uma aula anterior a classe residual (ou a classe de congruência de \(a\)) módulo \(n\) como \[ \overline a=\{a+kn\mid k\in\Z\}=\{b\in\Z\mid b\equiv a\pmod n\}. \] Provamos ainda que \(\overline a=\overline b\) se e somente se \(a\equiv b\pmod n\). Assim há exatamente \(n\) classes residuais módulo \(n\), nomeadamente, \[ \overline 0, \overline 1,\ldots,\overline{n-1}. \] Denotamos por \(\Z_n\) o conjunto das classes residuais módolo \(n\): \[ \Z_n=\{\overline 0,\overline 1,\ldots,\overline{n-1}\}. \] Portanto \(\Z_n\) é um conjunto finito com \(n\) elementos; ou seja \(|\Z_n|=n\). Por exemplo, \[ \Z_5=\{\overline 0, \overline 1,\overline 2,\overline 3,\overline 4\}. \] Nós podemos definir duas operações, uma soma e uma multiplicação, no conjunto das classes residuais pondo \[\begin{align*} \overline a+\overline b&=\overline{a+b};\\ \overline a\cdot\overline b&=\overline{a\cdot b} \end{align*}\] para todo \(\overline a,\overline b\in\Z_n\).

Exemplo 26.1 Por exemplo, se \(\bar 2,\bar 4\in \Z_6\), então\[\begin{align*}\bar 2+\bar 4&=\overline{2+4}=\bar 6=\bar 0;\\\bar 2\cdot \bar 4&=\overline{2\cdot 4}=\bar 8=\bar 2.\end{align*}\]

Lema 26.1 As operações \(+\) e \(\cdot\) são bem definidas no conjunto \(\Z_n\). Além disso estas operações satisfazem as seguintes propriedades para todo \(\overline a,\overline b,\overline c\in\Z_n\):

  • \((\overline a+\overline b)+\overline c=\overline a+(\overline b+\overline c)\) (associatividade da adição);
  • \(\overline a+\overline b=\overline b+\overline a\) (comutatividade da adição);
  • \(\overline a+\overline 0=\overline a\) (elemento neutro para a adição);
  • \(\overline a+(\overline{-a})=\overline 0\) (elemento simétrico para a adição);
  • \((\overline a\overline b)\overline c=\overline a(\overline b\overline c)\) (associatividade da multiplicação);
  • \(\overline a\overline b=\overline b\overline a\) (comutatividade da multipliação);
  • \(\overline a\overline 1=\overline a\) (elemento neutro da multiplicação);
  • \(\overline a(\overline b+\overline c)=\overline a\overline b+\overline a\overline c\) (distributividade).

Comprovação. O fato que a operações \(+\) e \(\cdot\) são bem definidas é equivalente ao seginte fato. Se \(a_1,a_2,b_1,b_2\in\Z\) tais que \(\overline{a_1}=\overline{a_2}\) e \(\overline{b_1}=\overline{b_2}\), então \[\begin{align*} \overline{a_1}+\overline{b_1}&=\overline{a_2}+\overline{b_2}\\ \overline{a_1}\overline{b_1}&=\overline{a_2}\overline{b_2}\\ \end{align*}\] As equações acima são equivalentes às congruências \[\begin{align*} a_1+b_1&\equiv a_2+b_2\pmod n\\ a_1b_1&=a_2b_2\pmod n\\ \end{align*}\] Mas estas congruências são verdadeiras por um resultado que provamos na aula sobre congruẽncias. As propriedades listadas são mais ou menos óbvias. Vamos provar a distributividade. Obtemos usando a definição das operações que \[ \overline a(\overline b+\overline c)=\overline a\overline{b+c}=\overline{a(b+c)}=\overline{ab+ac}=\overline{ab}+\overline{ac}=\overline a\overline b+\overline a\overline c. \]

As seguintes tabelas contém as tabelas da adição e multiplicação em \(\Z_5\).

Tabela 26.1: Tabela da adição em \(\Z_5\).
\(+\) \(\bar 0\) \(\bar 1\) \(\bar 2\) \(\bar 3\) \(\bar 4\)
\(\bar 0\) \(\bar 0\) \(\bar 1\) \(\bar 2\) \(\bar 3\) \(\bar 4\)
\(\bar 1\) \(\bar 1\) \(\bar 2\) \(\bar 3\) \(\bar 4\) \(\bar 0\)
\(\bar 2\) \(\bar 2\) \(\bar 3\) \(\bar 4\) \(\bar 0\) \(\bar 1\)
\(\bar 3\) \(\bar 3\) \(\bar 4\) \(\bar 0\) \(\bar 1\) \(\bar 2\)
\(\bar 4\) \(\bar 4\) \(\bar 0\) \(\bar 1\) \(\bar 2\) \(\bar 3\)
Tabela 26.2: Tabela da multiplicação em \(\Z_5\)
\(\cdot\) \(\bar 0\) \(\bar 1\) \(\bar 2\) \(\bar 3\) \(\bar 4\)
\(\bar 0\) \(\bar 0\) \(\bar 0\) \(\bar 0\) \(\bar 0\) \(\bar 0\)
\(\bar 1\) \(\bar 0\) \(\bar 1\) \(\bar 2\) \(\bar 3\) \(\bar 4\)
\(\bar 2\) \(\bar 0\) \(\bar 2\) \(\bar 4\) \(\bar 1\) \(\bar 3\)
\(\bar 3\) \(\bar 0\) \(\bar 3\) \(\bar 1\) \(\bar 4\) \(\bar 2\)
\(\bar 4\) \(\bar 0\) \(\bar 4\) \(\bar 3\) \(\bar 2\) \(\bar 1\)

Definição 26.1 Dizemos que um elemento \(\overline a\in\Z_n\) é invertível se existe \(\overline b\in\Z_n\) tal que \(\overline a\overline b=\overline 1\). Neste caso \(\overline b\) é dito inverso de \(\overline a\) e escrevemos \(\overline b=\overline a^{-1}\)

Exemplo 26.2 Por exemplo \(\bar 3\in\Z_{10}\) é invertível, pois \(\bar 3\cdot \bar 7=\bar 1\). Logo \(\bar 3^{-1}=\bar 7\). Por outro lado, \(\bar 2\in\Z_{10}\) não é invertível

Pode-se observar para \(n\geq 2\) que os elementos \(\bar 1,\overline{-1}=\overline{n-1}\) são sempre invertíveis, enquanto \(\bar 0\) nunca é invertível. Denotamos por \(\Z_n^*\) o conjunto de classes invertíveis em \(\Z_n\). Por exemplo, \(\Z_6^*=\{\bar 1,\bar 5\}\).

Lema 26.2 Um elemento \(\overline a\in\Z_n\) é invertível se e somente se \(\mdc an=1\). Neste caso, o inverso de \(\overline a\) é único e ele pode ser encontrado usando o Algoritmo Estendido de Euclides

Comprovação. Um elemento \(\overline a\) é invertível se e somente se existir \(\overline b\in\Z_n\) tal que \(\overline a\overline b=\overline 1\); ou seja, \(ab\equiv 1\pmod n\). Isso acontece se e somente se \(ab-1=kn\) com algum \(k\in\Z\); ou seja, a equação diofantina \[ ab-kn=1 \] possui solução \((b,k)\) em \(\Z\). Mas nós já vimos que esta equação tem soluções inteiras se e somente se \(\mdc an=1\) e que neste caso uma solução pode ser encontrada usando o Algoritmo Estendido de Euclides. Se \((b,k)\) é uma solução, então \[ ab=1+kn\equiv 1\pmod n \] e assim \(\bar a\cdot\bar b=\bar 1\) e \(\bar b=\bar a^{-1}\). A unicidade do inverso também segue de um resultado anterior que afirmou que o conjunto dos inverso de \(a\) módulo \(n\) formam uma classe residual módulo \(n\). Aqui nós vamos fazer uma outra demonstração que usa apenas as propriedades que foram listadas no lema anterior. Assuma que \(\overline b,\overline c\in\Z_n\) são inversos de \(\overline a\); ou seja, \(\overline a\overline b=\overline a\overline c=\overline 1\). Portanto \[ \overline b=\overline b\overline 1=\overline b(\overline a\overline c)=(\overline b\overline a)\overline c=\overline 1\overline c=\overline c. \] Daqui obtemos que \(\overline b=\overline c\) como desejado.

O conjunto das classes invertíveis de \(\Z_n\) é denotado por \(\Z_n^*\).

Corolário 26.1 Tem-se que \(|\Z_n^*|=\varphi(n)\) (onde \(\varphi\) é a função de Euler). Além disso, todo elemento diferente de \(\overline 0\) é invertível em \(\Z_n\) se e somente se \(n\) é primo

O corolário anterior implica que, se \(p\) for primo, a estrutura \(\Z_p\) comporta-se na mesma maneira como \(\Q\), \(\R\), ou \(\C\) no sentido que pode fazer as operações \(+\) e \(\cdot\) e pode também dividir por qualquer elemento não nulo. Nós dizemos que a estrutura \(\Z_p\) é um corpo finito. Corpos finitos têm muitas aplicações na matemática, mas também fora da matemática tal como na engenharia, física, química, etc.

Definição 26.2 Um inteiro \(a\in\Z\) é dito invertível módulo \(n\) (com \(n\in\N\)) se existir \(b\in\Z\) tal que \(ab\equiv 1\pmod n\). Neste caso, \(b\) é dito inverso modular de \(a\) módulo \(n\).

Note que \(a\in\Z\) é invertível módulo \(n\) se e somente se \(\bar a\in\Z_n\) é invertível que ocorre se e somente se \(\mdc an=1\). Além disso, \(\bar b\in\Z_n\) é inverso de \(\bar a\) se e somente se \(b\in\Z\) é inverso modular de \(a\) módulo \(n\). Um inverso modular de \(a\) (caso existir) pode ser encontrado usando o Algoritmo Estendido de Euclides. O inverso modular não é único, mas os inversos modulares de \(a\) (caso existirem) formam uma classe residual módulo \(n\).